sábado, janeiro 31, 2009

VEJA Entrevista Mauricio de Sousa

A Mônica já quer namorar

O criador da menina dentuça que encantou três
gerações de crianças explica por que a versão
adolescente da personagem faz tanto sucesso


Duda Teixeira

Lailson Santos

"Alguns disseram que eu matei
a Mônica. Esquecem que hoje as famílias conversam sobre tudo: sexo, drogas, violência"

O desenhista Mauricio de Sousa é o criador do personagem infantil brasileiro de maior sucesso em todos os tempos, a Mônica. Agora, numa manobra incomum no mundo dos quadrinhos, ele acaba de reinventá-la. Na revista Mônica Jovem, já na quinta edição, a menina dentuça e voluntariosa se transformou numa adolescente sensual, que veste minissaia e beija os rapazes na boca. O sucesso da publicação é estrondoso, com 410 000 exemplares vendidos, contra 200 000 que costuma vender o gibi da Mônica ainda criança. A mudança da personagem, alega Mauricio, foi uma forma de se adaptar às transformações de uma sociedade em que a infância é cada vez mais curta. "Se antes adolescentes de 14 anos ainda liam e gostavam dos meus gibis, hoje eles começam a deixar de lê-los aos 7", ele diz. Aos 73 anos, Mauricio falou a VEJA do futuro dos gibis, da experiência dolorosa de ter um filho sequestrado e de sua família numerosa.

Como explicar que os gibis da Mônica adolescente vendam o dobro dos da Mônica criança? Em cinco décadas, uma mudança extraordinária aconteceu no nosso público. Se antes adolescentes de 14 anos ainda liam e gostavam dos meus gibis, hoje eles começam a deixar de lê-los aos 7. Aos poucos, passam a considerar a Turma da Mônica coisa de criança e a comprar mangás japoneses. Quando estão com 10 anos, já se assumem como jovens. São os pré-adolescentes, meninos e meninas com preocupações e vontades diferentes daquelas que havia quando a Mônica foi publicada pela primeira vez. A infância, portanto, encolheu. Há mais ou menos cinco anos, comecei a pensar em uma maneira de não perder esses leitores. Minha solução foi oferecer a eles um pouco do universo jovem, que até então era reservado aos mais velhos. Pegamos os tradicionais personagens da Turma da Mônica e os inserimos em histórias com uma boa dose de relacionamento. Eles agora protagonizam cenas de ciúme, sentem atração pelo outro sexo e ficam inseguros no grupo. Estão com os hormônios pipocando e não sabem o que fazer com isso. No quarto número, colocamos a Mônica beijando na boca o Cebolinha, agora chamado de Cebola. Deu supercerto. Crianças de 7 anos voaram para o mangá como abelhas no mel. Leem as histórias e se projetam nos nossos personagens. As meninas não veem a hora de ser como a Mônica jovem: descolada, bonitinha, moderninha.

"Hoje a criança ouve
música, joga videogame
e estuda, tudo ao
mesmo tempo.
Quando pega um gibi,
contudo, ela fica
completamente
mergulhada na história.
Os gibis e os livros
ajudam os pequenos
a se concentrar"

Estamos perdendo anos preciosos da infância? Essa melancolia que vejo em muitos adultos não faz sentido. Nada está sendo perdido. A questão é que tudo ficou mais intenso, condensado.
A infância diminuiu em quantidade, mas ganhou em qualidade. As crianças de hoje aproveitam mais e melhor o tempo e se tornam cidadãs e se formam como ser humano antes do tempo. Logo, logo, será preciso adiantar as datas para que possam entrar mais cedo na faculdade. Elas fazem tudo ao mesmo tempo e não se queixam disso. Não têm preguiça. Meu filho Marcelinho, de 10 anos, está passando alguns dias em uma cidade pequena no interior da Bahia. Está adorando conviver com um monte de crianças com bagagem cultural diferente. Brinca na rua, nada no rio, anda de jegue e joga bola livremente. A qualidade dessa experiência pela qual ele está passando é fantástica. O Marcelo está fazendo as coisas que eu fiz quando era pequeno. Mas ele não precisa passar vários anos da vida fazendo isso. Pode ficar apenas dez dias. Quando voltar a São Paulo, retornará para as aulas de inglês e será novamente um dos campeões de xadrez da escola. Jogará videogame e assistirá à novela. Então essa experiência na Bahia se somará às outras. É uma vida vibrante. O Marcelo não é excepcional. Todas as crianças hoje o são, mesmo as que moram em bairros pobres e favelas.

O senhor foi criticado quando criou a Mônica jovem? No Orkut, teve gente dizendo que eu apelei, que estava expondo as crianças a algo nocivo. Pura besteira. Os pequenos não entendem que uma roupa curta ou um decote têm algo a ver com sexualidade. Eles interpretam isso como algo fashion, colorido, quase uma mensagem gráfica. Outros disseram que eu devia estar sob efeito de alguma droga, que eu tinha matado a Mônica. Esquecem ou não percebem que nosso trabalho sempre tem a família como foco principal. Acontece que nas casas de hoje se pode conversar sobre tudo: sexo, drogas, violência. Se o pai não puxa esses assuntos, o filho de 5 anos faz isso por ele. É preciso parar de tratar as crianças como seres inferiores, sem senso crítico, sem experiência de vida. Tudo pode virar tema. Não é preciso censurar, apenas deve-se tomar cuidado para usar uma linguagem correta. Em 2004, decidimos que o Xaveco, amigo do Cebolinha e do Cascão, seria filho de pais separados. Ele passaria alguns dias com o pai e outros com a mãe, normalmente. Depois que publicamos a primeira história do Xaveco, nós nos sentamos e ficamos esperando os e-mails e cartas de reclamação. Não houve um único sequer. É um exemplo claro de como o mundo mudou.

O Menino Maluquinho, criação do cartunista Ziraldo, é filho de pais separados e vai fazer trinta anos em breve... O Ziraldo avança mais do que eu. Tenho de ser mais cuidadoso. No estúdio, no parque de diversões e nos escritórios de apoio, temos 500 pessoas trabalhando. Ainda há os funcionários da gráfica e das empresas que fazem os brinquedos. É uma responsabilidade muito grande. Tem gente pedindo para eu criar um personagem gay. Esse tema ainda é muito novo. Mas eu sei que, no futuro, se essa tendência continuar, será natural ter um homossexual na Turma. No meu estúdio, digo que não devemos levantar uma bandeira e ir à frente de uma passeata. Devemos segurar a bandeira quando ela já está passando. Precisamos falar a língua do dia e da hora, mas tomando certos cuidados. Foi com essa fórmula que construí minha carreira.

O senhor já pensou em criar um personagem rebelde ou fazer histórias para adultos com mais realismo? Confesso que não saberia fazer isso. Minhas histórias sempre têm uma preocupação, uma proposta de futuro. Tenho para com meus personagens uma atitude parecida com a que exerço com meus filhos. Às vezes, convoco um deles para um sermão, pedindo que se comporte melhor. Muita gente reclama que eu deveria mostrar coisas negativas, como miséria e fome. Também não é a nossa proposta. Durante a II Guerra, todos os personagens dos quadrinhos americanos foram para o campo de batalha. Todos menos o Ferdinando, do Al Capp. Quando perguntaram ao desenhista se o personagem era contra os Estados Unidos, Al Capp respondeu que o soldado que lia o jornal na trincheira não queria saber de guerra. Ele precisava, sim, é de algo gostoso, bucólico, que o fizesse lembrar que tinha um lugar para retornar quando o conflito acabasse. É essa, um pouco, a nossa ideia. Promovemos lazer, entretenimento e diversão. O resto, a criança encontra na televisão ou na esquina.

Chico Bento é um personagem rural em um país no qual a maior parte da população é urbana. O personagem ainda faz sentido? Chico Bento não vai sumir, porque as pessoas estão retornando ao campo. Não querem viver em uma tapera, mas almejam um lugar com qualidade de vida, perto da natureza. É isso que o Chico representa. Se pudesse, eu me mudaria para Caçapava, onde tenho uma chácara. Nos últimos anos, expulsei meus roteiristas de São Paulo. Eles trabalham em Porto Alegre, Ribeirão Preto, Jundiaí, Florianópolis e me mandam material diariamente. A cada trinta ou quarenta dias, todos se reúnem para uma conversa. Também não acho que Chico Bento fale de um lugar totalmente utópico ou idílico. Há um monte de cidades povoadas por gente simples, singela como ele. Basta procurar. Na China, o Chico faz mais sucesso que qualquer outro personagem. Os chineses são um povo rural, com a cabeça no campo. Adoram o nosso caipira.

Com a internet, o celular e a preocupação com o consumo de papel, existe um futuro para os gibis? O papel pintado ainda vai durar muito tempo. Há uma diferença gigantesca entre a atenção que as crianças dão ao que está no papel e a dedicada ao que aparece nos equipamentos modernos, como videogame e computador. Meu filho Maurício ouve música com três telas ligadas, joga videogame e estuda ao mesmo tempo. Para quem é mais velho parece estranho, mas as crianças de hoje conseguem fazer isso normalmente. Quando uma criança pega um gibi, contudo, ela se isola totalmente do mundo. Fica completamente mergulhada na história. Com isso, o gibi ou o livro ajudam os pequenos a se concentrar. O cérebro deles estabelece uma prioridade, o que é ótimo para o aprendizado e a memória. Se eles lerem gibis cinco minutos por dia, o papel nunca vai desaparecer.

"Meu filho não carrega sequelas do sequestro. Dois dias depois do estouro do cativeiro, fomos viajar juntos e ele aprendeu que os momentos ruins são finitos. Se eu o tivesse prendido em casa, com seguranças, o trauma teria se ampliado"

Seu filho Marcelo foi sequestrado no ano passado. Como ele assimilou o que aconteceu? Apesar de ter ficado quase vinte dias em cativeiro, o Marcelo não carregou nenhuma sequela. Um dos fatores para isso é que ele ficou o tempo todo com um irmão menor e a mãe, que brigou para ir junto. Graças à presença dela, o Marcelo nunca se sentiu totalmente ameaçado ou sem proteção. Isso bloqueou qualquer dano à cabeça dele. Outro fator importante foi que, dois dias depois do estouro do cativeiro, eu peguei meu filho, coloquei-o no avião e o levei para Boston, onde eu tinha uma palestra para fazer na Universidade Harvard. Foi uma viagem maravilhosa. Ele conheceu Nova York, jogou bola e assistiu a minha conferência. Foi uma das melhores coisas que fiz, porque com isso ele aprendeu que os momentos ruins são finitos. Depois, Marcelo juntou tudo o que viveu nesses dias agitados e cresceu um pouquinho mais. As coisas ruins, dramáticas, ficaram na cabeça dele como se houvesse cortinas tapando. Se eu o tivesse prendido em casa, contratado um monte de seguranças e o proibido de sair, apenas teria ampliado aquela experiência traumática. Como não fiz isso, a ferida cicatrizou.

A alta criminalidade nas cidades brasileiras impede as crianças de brincar na rua ou no campinho, como a Mônica e o Cebolinha. Chegou a hora de mudar o cenário das histórias? Detesto me sentir refém em uma cidade como São Paulo. Fico triste quando ando no meu bairro e vejo que as casas viraram casamatas. Imóveis lindos estão completamente cercados por muros. Briguei muito comigo mesmo para aceitar blindar meu carro. Não queria fazer isso. Tenho ainda um Fusquinha amarelo que não é blindado. Quando o dirijo, o pessoal da empresa me chama de louco. Viver acuado é aceitar uma violência contra nós mesmos. É paradoxal. Evoluímos com tanta firmeza, criando tantas coisas para as crianças, e ao mesmo tempo mostramos tanta fraqueza diante da violência. São coisas que não batem. As crianças devem ter o direito de brincar na rua com segurança. Viajo muito por outros países e percebo que as pessoas não sentem essa tensão que vivemos aqui. Um dia temos de dar um jeito nessa situação.

O senhor tem dez filhos com quatro mulheres, onze netos e um bisneto. Como se lida com uma família tão numerosa? Ninguém pode pensar hoje que casou por toda a vida. As crianças perceberam isso. Pela minha experiência, quando os pais resolvem bem a situação entre eles, os pequenos não estão nem aí. São fortes, adaptam-se. Mesmo se porventura levam uma pancada, recobram-se e voltam ao normal. Quando meus filhos se juntam, são irmãos do mesmo jeito. Claro que às vezes um deles pode ficar com ciúme. É inevitável. Mas dá para contornar. Hoje somos um núcleo familiar em que há hierarquia e disciplina. Há inúmeros casos como o meu. Ao atravessarem essas mudanças, as crianças de hoje em dia ganham muito em autoestima. Aprendem que são capazes de resistir às mudanças e até de ensinar lições aos pais.