quarta-feira, dezembro 31, 2008

ROBERTO DAMATTA - O último dia: o tempo em três tempos

Apenas quem não vive no tempo, mas sim no presente, é feliz.

Wittgenstein Nem sempre a crônica coincide com um grande acontecimento. Em geral, há uma patética falta de sincronia entre a coluna e o dia de sua publicação. Ora, é essa desarmonia que faz a crônica. Mas hoje, quando sua publicação coincide com o último dia do ano, estamos longe disso. Nessas datas inclusivas, há uma rara simultaneidade entre todos os que trabalham com a notícia (e com a vida), pois tanto os que reportam as novidades, quanto os que as comentam, fazendo o papel de acólitos, estão unidos na tarefa maior de celebrar um novo tempo, um desígnio mais importante do que noticiar, opinar ou comentar. No Ano Novo, a notícia maior é celebrar o Ano Novo. E celebrar é repetir e, com isso, dividir, classificar, medir, inventar, tentar capturar e criar a ilusão de controlar e manipular também o tempo.

É muito difícil não ser prosaico ou reiterativo nas viradas do ano. Nessas ocasiões em que ritualizamos o próprio tempo e não um fato que eventualmente o esboça. Sobretudo quando ele é concebido como linear e acumulativo, cada período tendo que ser melhor do que o anterior. Algo problemático, digase logo, nesta passagem de 08 para 09.

Ao dizer que 1500 foi o ano do Descobrimento do Brasil; que 1888, foi o da Abolição da Escravatura; e que, 1945, terminou a segunda grande guerra; mascaramos e personalizamos a essas datas, tirando-as de uma série incômoda, infinita e indiferente para seus pretensos controladores que se sabem paradoxalmente transitórios e, por isso, inclassificáveis nas suas paixões.

No rito de ano novo, o passado faz sentido porque os seus acontecimentos mais terríveis foram assimilados e agora fazem parte de uma estrutura.

No final do ano — olhando onipotentemente o seu começo — “vemos” o tempo passar; quando, de fato, nós é que passamos. Só temos uma consciência altaneira da crise, do crime, da falcatrua, do mau caráter dos governantes, do desamor dos amigos, depois... Quando o presente (que nos transforma em baratas tontas) vira passado (que nos traz acusatória ou ponderada, mas tipicamente jornalística, sabedoria). Por isso não há como não fazer hoje, dia 31 do 12, as retrospectivas que pretendem assimilar o que não foi previsto ou evitado. Hoje, podese dizer que 2008 foi domingueiro, estival e carnavalesco; ao passo que 2009 é anunciado como aquela segunda-feira que vai nos fazer pagar os pecados do dia anterior.

Na medida em que o mundo encolhe, o que é bem diferente de transformarse num todo uniforme, temos um problema . Sabemos mais dos outros mas, como compensação, temos muito mais para compreender e interpretar.

No passado, os eventos recebiam apenas uma estampa interpretativa: a nossa. Hoje, estamos diante de muitos mais fatos e, mais que isso, da consciência de que um mesmo evento tem muitos sentidos.

A consciência inevitável do mundo produz interpretações gerais e locais.

Um dos seus dilemas é saber que tudo pode ser lido tanto pela televisão a cabo, quanto pela vizinhança, pelo bairro onde as coisas acontecem.

O global não é apenas um padrão, uma mania ou um híbrido sem rosto. Ele é um conjunto de possibilidades interpretativas nas quais as vozes longínquas não podem mais ser emudecidas ou transformadas em sussurros. Ademais, tendo fechado o círculo sobre nós mesmos, ouvimos também os bramidos do planeta.

É como se o próprio teatro estivesse comunicando que não tolera mais o drama que nele se desenrola.

Fico comovido com essa luta pela personificação do tempo. Seja fazendo um inventário do que ocorreu de mais importante, seja destacando aquilo que os controladores da mídia assumem por consenso e impressão pessoal ter sido fundamental, diferente ou inovador. E nisso, permitamme os crentes, vai o nosso viés de progresso, pois a expectativa na qual fomos todos nutridos é a de que o ano 1000 foi pior do que 2000. Entre outras coisas porque não havia penicilina, televisão, computador, i-phone, metralhadoras, bombas atômicas, aviões a jato e outras cositas que o leitor pode ir enumerando; mas — devo ressaltar — já havia preconceito, inveja, desejo, ódio, sectarismo, ressentimento, exploração e violência.

Mudou? Certamente. É melhor viver numa democracia liberal do que numa monarquia despótica. Mas melhorou no sentido de controlar o mal que se esconde em nossos corações? O sentido do rito de passagem que hoje celebramos jaz na nobre (e vã) tentativa de empacotar alguma verdade e beleza. Ao congelar um período de tempo dando-lhe automaticamente início, meio e fim, cada qual balizado por algum acontecimento, pode-se ver um caminho a seguir ou bloquear. Que 2009 seja menos contraditório e permita continuar na ilusão de progresso que tem sido a nossa marca, avatar e apanágio. Os cerimoniais de folhinha confortam porque eles produzem a impressão de que este “2008” que hoje morre, e o novo ano de “2009” que nasce, permite devolver o tempo à caixa de Pandora de onde, dizem, jamais deveria ter saído.