quarta-feira, dezembro 24, 2008

Parag Khanna O gigante está vulnerável


"Alguns analistas acreditavam que a Índia estaria
insulada em relação à crise. Essa perspectiva se
revelou ilusória. A economia indiana vai sofrer,
como já se nota na queda da bolsa do país"

Manish Swarup/AP

CONTRA O SISTEMA
A escritora Arundhati Roy com manifestantes contrários à instalação
de uma fábrica de carros: a Índia tem muitos focos de instabilidade


Recentemente lançado no Brasil, meu livro O Segundo Mundo (Intrínseca) foi escrito antes de a atual crise econômica chegar a seu pico. No entanto, não encontro nada a revisar no livro. No capítulo final, está dito claramente que o déficit e o endividamento americanos eram uma receita para o desastre. Apontei a competição entre o dólar e outras moedas no portfólio de reservas de vários países. E observei que o modelo capitalista americano, apesar de todas as suas virtudes, teria de passar por reformas. Essas três afirmações se provaram verdadeiras. A crise americana é profunda e atinge o mundo todo. As repercussões na Índia – tema deste artigo –, embora ainda incertas em seu alcance, podem ser desastrosas para um país que ainda sofre com a precariedade de sua infra-estrutura, e no qual o governo não conta com a capacidade de oferecer pacotes de socorro econômico – como ocorre, por exemplo, com a China.

Ninguém é uma ilha

Alguns analistas acreditavam que, pelo fato de não ter um sistema bancário e financeiro tão desenvolvido, a Índia estaria isolada, insulada em relação à crise. O que era inicialmente uma fraqueza teria se tornado, no contexto atual, uma vantagem – o mesmo se daria em alguns países do Oriente Médio, onde as leis islâmicas limitam a ação bancária, mas não na América Latina, que está mais exposta à diminuição de linhas de crédito internacionais. Essa perspectiva se revelou ilusória. A Índia não está isolada da crise de crédito. Suas exportações se baseiam largamente na área de tecnologia e manufaturados – e os últimos, em particular, tendem a afundar por um bom tempo. De resto, o governo não tem recursos para prover o tipo de estímulo substancial que a China e os Estados Unidos oferecem. A economia indiana vai sofrer, como já se nota na queda da bolsa do país.

Entraves do governo

Um grande entrave para o desenvolvimento econômico indiano sempre foram a incompetência e a corrupção governamental. Esta atinge o setor privado sobretudo por causa da exigência de licenças para novos negócios, um obstáculo para empresários indianos e também para os investimentos estrangeiros. O mercado em geral não opera de forma livre e desregulamentada. A maioria dos setores ainda é controlada de uma forma ou outra. Não por outra razão, os elementos mais bem-sucedidos no setor privado da Índia são aqueles que se basearam no comércio exterior. É o caso da indústria de software, em que o grosso dos negócios é internacional. As maiores empresas buscam firmar uma presença massiva nos Estados Unidos e na Europa – é um modo de contornar os obstáculos internos da Índia. Ainda não está claro de que forma essas empresas serão afetadas pela crise. No setor de tecnologia, uma vez que uma empresa recorreu a serviços externos (outsourcing), isso é difícil de reverter. Os mercados ocidentais que vêm transferindo serviços de administração tecnológica para a Índia devem continuar dependentes desses serviços. Mas há outras áreas que a crise afeta mais imediatamente. O preço de certas commodities está desabando – o aço, por exemplo. O Brasil, como grande produtor de aço, também está sentindo esse impacto. No que concerne às commodities, aliás, Índia e Brasil estão atualmente no mesmo barco.

Gargalos na infra-estrutura

A Índia fez um péssimo trabalho no incremento da infra-estrutura nos últimos dez anos. O volume dos investimentos do governo foi insuficiente, e o pouco que se investiu foi mal aplicado – é por isso que as autoridades regionais tendem a ter mais poder do que o governo central. Espera-se que isso mude, mas vai depender da arrecadação do governo e de investimentos estrangeiros. Nesse ponto, a Índia teria muito a aprender com a China. Basta olhar o pacote de estímulo econômico daquele país, que já soma até aqui 600 bilhões de dólares, centrados no desenvolvimento de infra-estrutura e na criação de empregos. Foi uma jogada importante deles.

Grandeza e insignificância

Em O Segundo Mundo, afirmo que a Índia é grande, mas não importante – não como a China, por exemplo. Isso é muito claro na geopolítica da Ásia. Se observarmos diferentes organizações diplomáticas, como o Shanghai Cooperation Organisation, as Nações Unidas, a Comunidade Asiática Oriental, constataremos que a Índia é um ator marginal, com papel pouco significativo. Recentemente, a Índia conseguiu bloquear a Rodada Doha, da Organização Mundial do Comércio. Manteve a política protecionista e o propósito de subvencionar fazendeiros. Do ponto de vista da política doméstica, pode até fazer sentido – mas o país mostrou-se incapaz de promover um modelo alternativo de governança mundial e reforma institucional. A Índia está nessa posição singular: não é um líder mundial, mas pode bloquear acordos como Doha. Ainda é cedo para dizer se a atual crise vai mudar esse equilíbrio. Se instituições como o FMI saírem novamente fortalecidas, o papel da Índia continuará pequeno, pois o país contribui pouco com essas organizações.

Terrorismo e instabilidade

Os ataques terroristas em Mumbai confirmam a posição precária do país. A Índia é muito vulnerável, tanto a ameaças externas como o grupo terrorista paquistanês Lashkar-e-Taiba, como à instabilidade interna criada por insurgentes maoístas ou pelas tensões sectárias entre hindus e muçulmanos. A Índia ainda é a maior democracia na Ásia, mas as questões mais profundas são a estabilidade política do país e a estabilidade geopolítica da região. Ambas estão atualmente em situação duvidosa.

Pobreza e crise

As estatísticas sobre redução da pobreza, na Índia em particular e na Ásia em geral, têm um problema sério: as medidas são geralmente feitas em PIB per capita. Não consideram a segurança alimentar nem o preço flutuante de certas commodities. Nos últimos vinte anos, o aumento dos preços do petróleo e da comida empurrou um largo contingente de volta à pobreza – até 1 bilhão de pessoas, segundo o Programa Alimentar Mundial. Uma porção significativa dessas pessoas está na Índia. Quando se tenta argumentar estatisticamente que centenas de milhões de pessoas foram tiradas da pobreza, está-se fazendo apenas um jogo com os números. No meu critério, uma pessoa só pode ser considerada acima da linha de pobreza se ela está em patamar seguro em relação a flutuações no preço da comida e das commodities. Claramente, esse nunca foi o caso da Índia, atingida duramente por qualquer aumento no preço desses produtos.

O pior e o melhor dos mundos

A melhor perspectiva para a Índia é lutar por uma nova arquitetura de poder no campo econômico, materializada em instituições como, por exemplo, um Fundo Monetário Asiático, com reservas prontamente disponíveis para proteger os diferentes países de crises como a atual. O mercado interno indiano também precisa ser desregulamentado, para permitir a entrada de agentes econômicos eficientes. Com investimentos estrangeiros, o mercado se tornaria mais liberal e mais forte. O pior cenário seria um impasse mundial, no qual não se chegue a um consenso sobre a regulação do sistema financeiro. Acordos comerciais ficariam paralisados, o que retardaria o reaquecimento das exportações. Tudo isso coibiria a geração de empregos no setor de manufatura, que respondeu pela maior parte da oferta de emprego na Índia nos últimos cinco anos. Se o ritmo da criação de empregos diminuir, as áreas mais populosas do país serão atingidas. Será uma catástrofe social.