quarta-feira, dezembro 24, 2008

Niall Ferguson 2009, o ano da Grande Repressão


"Endividamento excessivo é a chave desta crise; é a razão pela qual não estamos diante de uma recessão comum que possa ser contida apenas com um ajuste para menos das taxas de juros"

Chip Somodevilla/Getty Images

"O ESCOLHIDO"
O reforço que a reputação dos Estados Unidos ganhou com a eleição de Barack Obama deve ajudar no cenário de crise



No Levítico, livro do Antigo Testamento, capítulo 25, Deus ordena que os filhos de Israel observem um jubileu a cada cinqüenta anos. Hoje em dia, tendemos a associar a palavra com celebrações de aniversários reais, como o Jubileu de Ouro da rainha britânica, em 2002. Mas a concepção bíblica de um jubileu era mais precisa. E, em pelo menos um aspecto, pode haver bons argumentos para fazer de 2009 um ano de jubileu – no sentido original de uma redução geral, ou até de um completo cancelamento, das dívidas.

A cada sete anos, Deus disse a Moisés, os filhos de Israel não deveriam nem semear seus campos, nem podar suas videiras – uma espécie de recessão auto-imposta. E depois de sete desses anos sabáticos, no qüinquagésimo ano, a trombeta do jubileu deveria soar: "E santificareis o ano qüinquagésimo, e apregoareis liberdade na terra a todos os seus moradores; ano de jubileu vos será, e tornareis cada um à sua possessão".

Terras que houvessem sido vendidas deveriam ser retornadas ao vendedor original, e os pobres deveriam ser socorridos: "Quando teu irmão empobrecer e vender alguma parte da sua possessão, então virá o seu resgatador, seu parente, e resgatará o que vendeu seu irmão. (...) E, quando teu irmão empobrecer, e as suas forças decaírem, então sustentá-lo-ás, como estrangeiro e peregrino viverá contigo. Não tomarás dele juros, nem ganho". Além disso, judeus que eram escravos deveriam ser libertados.

Aos olhos modernos, entretanto, a mais surpreendente dessas injunções divinas era a de que as dívidas seriam canceladas como parte da "remissão do Senhor". Essa idéia é expressa no Deuteronômio, capítulo 15: "Todo credor remitirá o que emprestou ao seu próximo; não o exigirá do seu próximo ou do seu irmão, pois a remissão do Senhor é apregoada".

Tais injunções podem parecer utópicas ao leitor moderno. Como poderia qualquer sociedade sofisticada funcionar se todas as dívidas fossem canceladas a cada cinqüenta anos – ou, ainda pior, como o Deuteronômio parece sugerir, a cada sete anos? No entanto, sabemos que tais cancelamentos de dívidas aconteciam de fato no mundo antigo. Em 1788 a.C., por exemplo, cerca de 500 anos antes do tempo de Moisés, o rei Rim-Sin, de Ur, baixou um édito que declarava todos os empréstimos nulos e inválidos, extirpando alguns dos primeiros credores de dinheiro conhecidos da história.

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ECONOMIA EM FRANGALHOS
Empresas falidas na Alemanha dos anos 20: há lições para colher nas crises do passado

A idéia de um cancelamento generalizado de dívidas tampouco é inteiramente desconhecida nos tempos modernos. O falecido Gerald D. Feldman, a maior autoridade mundial no estudo da hiperinflação alemã de 1923, traçou um paralelo entre o antigo Yovel hebreu e a liquidação de todos os títulos de dívida em marcos como resultado do colapso da moeda alemã (embora, como ele mesmo prontamente admitia, os perdedores não tenham ficado nem um pouco jubilosos). Na esperança de evitar a dissolução do marco, John Maynard Keynes havia repetidas vezes proposto um cancelamento geral das dívidas e reparações de guerra originárias da I Guerra Mundial. Ainda que tal jubileu intergovernamental jamais tenha sido celebrado, o cancelamento de dívidas foi o que efetivamente aconteceu depois de 1931, começando com a moratória de um ano das dívidas e reparações das duas grandes guerras decretada pelo presidente americano Herbert Hoover.

Neste fim de 2008, há pessoas dos dois lados do Atlântico que anseiam por tal solução simples para o problema do endividamento excessivo. Paralelos com o período entreguerras não são inapropriados. É quase inevitável que se vejam sérias turbulências políticas e geopolíticas em 2009, à medida que a recessão comece a cobrar seu tributo de governos fracos (Tailândia e Grécia já se vêem em apertos) e aumente o perigo das rivalidades entre estados (Índia-Paquistão). Nas palavras do secretário do Tesouro americano, Henry Paulson, "estamos lidando com uma situação histórica que acontece apenas uma ou duas vezes a cada 100 anos". As apostas são altas, de fato. Será que chegou o tempo para um jubileu bíblico dos cinqüenta anos?

Endividamento excessivo é a chave desta crise; é a razão pela qual não estamos diante de uma recessão comum que possa ser contida apenas com um ajuste para menos das taxas de juros. É a razão pela qual ainda devemos temer, se não uma segunda Grande Depressão, pelo menos muito provavelmente a pior recessão desde os anos 30. Estamos vivendo o doloroso fim de uma era de alavancagem, que viu o total da dívida pública e privada subir de cerca de 155% do PIB americano no início dos anos 80 para algo em torno de 356% no meio deste ano. Com a dívida por família subindo de 75% dos rendimentos disponíveis em 1990 para muito perto de 130% às vésperas da crise, uma vasta proporção das famílias americanas está submergindo sob o peso de seus empréstimos acumulados. Os lares britânicos estão em situação ainda pior.

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EM COMBATE
Aviões B-17 em fabricação nos Estados Unidos, em 1942: hoje, como então, gigantescos gastos públicos

Olhando em retrospecto, vemos agora como uma grande proporção do crescimento americano desde 2001 foi financiada pelo mercado de títulos hipotecários. Sem esse recurso para financiar o consumo, de acordo com o economista John Mauldin, a economia mal teria crescido 1% ao ano durante o governo de George W. Bush. Olhando adiante, vemos quão difícil será estabilizar o preço das propriedades e o dos seguros baseados nelas. Já no fim de setembro, um em cada dez proprietários de casas com hipoteca nos Estados Unidos estava pelo menos com um mês em atraso ou em execução. Uma em cada cinco hipotecas agora excede o valor da casa para cuja compra ela foi usada. E o preço das casas segue desabando a uma taxa de mais de 15%, de acordo com o bem-conceituado índice Case-Shiller.

Entre o início de 2000 e o meio de 2006, o preço da casa média americana mais que dobrou. Desse pico em diante, o preço caiu 22%. Ainda terá mais 38% para cair se for retroceder até o estado inicial.

Não foram apenas os lares americanos que acumularam dívidas em anos recentes. As dívidas do setor financeiro cresceram ainda mais rapidamente à medida que os bancos tentavam aumentar seu grau de rentabilidade por meio de "alavancagem". De acordo com uma estimativa recente, o grau total de alavancagem (incluindo aí empréstimos não contabilizados) dos dois maiores bancos americanos era de 88:1 no Citibank e 134:1 no Bank of America. Ou seja: para cada dólar de capital próprio, eles tinham 88 dólares e 134 dólares emprestados, respectivamente. Foi somente porque tomaram empréstimos numa escala sem precedentes que esses grandes bancos conseguiram permanecer na ativa.

Entretanto, o pior ainda pode estar por vir para os bancos. Estimativas das perdas totais em ativos de risco agora oscilam entre 2,8 e 6 trilhões de dólares. No fim de novembro, o total de créditos dados como perdidos era de pouco mais de 583 bilhões de dólares, enquanto o capital levantado era de apenas 435 bilhões. Ou as perdas foram desinfladas, numa contabilidade que atribui valor nominal e não de mercado aos ativos – artifício necessário, dada a evaporação completa dos mercados para certos papéis –, ou aconteceram em algum lugar fora do sistema bancário. Seja lá qual for a alternativa correta, o sistema de crédito quebrou.

Uma reação em cadeia está agora a caminho, e não deixará intocado nenhum setor da economia mundial. A economia americana está se contraindo a uma taxa anual de 5%. Imóveis comerciais seguem o mercado residencial na sua queda livre. O Standard & Poor's 500 (S&P 500), índice que acompanha as cotações das ações de 500 das maiores empresas americanas, baixou 42% em relação a seu pico em outubro de 2007. E o mercado para os CDS – instrumentos financeiros originalmente criados para proteger o sistema bancário da inadimplência – sugere um surto de falências no ano que vem. A indústria automobilística já está sobrevivendo graças à respiração artificial provida pelo Tesouro americano.

Os Estados Unidos são o epicentro da crise, sem dúvida, mas ondas de choque já chegam à Europa e ao Japão. Quanto aos muito festejados países do grupo Bric – Brasil, Rússia, Índia, China –, suas bolsas de valores estão despencando. Embora o Brasil esteja relativamente bem entre os mercados emergentes, o fato é que, em dólares, seu mercado de ações caiu cerca de 50% até outubro. A recente queda no preço das commodities anuncia tempos duros para o até aqui pujante setor agrícola do país.

Um verdadeiro annus horribilis: assim foi 2008. Um ano em que todas as previsões tiveram de ser revisadas – geralmente para baixo – pelo menos três vezes. Um ano em que o paradoxo da globalização foi posto a nu, para todos verem.

De um lado, a crescente integração dos mercados de commodities, manufaturados, mão-de-obra e capital propiciou grandes ganhos. Como Adam Smith previra em A Riqueza das Nações, a economia liberal permitiu a divisão do trabalho e vantagens comparativas para operar em escala global. Dos anos 80 até 2007, a economia mundial gozou de uma combinação de crescimento alto e generalizado e de crises menos severas. De outro lado, quanto mais o mundo parece uma intricada rede multimodal, que opera com eficiência máxima, estoques mínimos e entregas bem calculadas, mais vulnerável ele se torna a um colapso sistêmico.

Esse é o verdadeiro significado da crise que começou em 2007. Claramente, não se trata de uma Grande Depressão na escala da dos anos 30, quando a produção americana declinou em até um terço e o desemprego alcançou 25%. Mas tampouco é apenas uma Grande Recessão. Eu a chamo de "Grande Repressão", por duas razões. A primeira é que muitas pessoas continuam em uma atitude de severa negação no que diz respeito à gravidade do choque econômico que estamos sofrendo. A outra é que as autoridades monetárias e fiscais estão fazendo tudo em seu poder para reprimir a crise.

Paul Sakuma/AP

INOVAÇÃO
Fábrica de chips da Intel: o futuro depende de investimentos em tecnologia

O que faz com que esta crise tenha um interesse pungente para os historiadores financeiros é a consciência de que estamos testemunhando um experimento em tempo real com não apenas uma, mas duas teorias sobre a Grande Depressão.

Ben Bernanke, o presidente do Fed, o banco central americano, está aplicando a lição de Milton Friedman e Anna Schwartz em História Monetária dos Estados Unidos – um livro cujo argumento é o de que a Depressão foi, em grande medida, culpa do Fed daquele período, que não injetou liquidez em um sistema bancário a ponto de implodir. Bernanke não se contentou em reduzir a taxa referencial de juros para um intervalo entre zero e 0,25% – um gesto sem precedentes. Ele também emprestou livremente aos bancos, com garantias não reveladas, e provavelmente corporificadas em títulos tóxicos, sem nenhum valor. Agora ele está comprando papéis no mercado aberto. O resultado foi uma explosão da base monetária – e do balanço do Fed. Com ativos próximos de 2,3 trilhões de dólares e um capital de menos de 40 bilhões, o Fed cada vez mais se parece com um hedge fund público, alavancado na ordem de 50:1.

Por sua vez, o secretário do Tesouro, Henry Paulson, revelou-se um discípulo inconsciente de John Maynard Keynes, promovendo um enorme déficit governamental, num esforço não apenas para socorrer o setor financeiro, mas também para prover um substituto do setor público para o consumo do setor privado, que vem caindo sensivelmente. Mesmo antes de o presidente eleito Obama lançar seu prometido programa de investimentos em infra-estrutura, uma projeção da Morgan Stanley indicava que o déficit do ano que vem deve exceder 12% do PIB.

Houve um tempo em que monetarismo e keynesianismo eram considerados mutuamente excludentes. Tão severa é esta crise que governos do mundo inteiro estão tentando aplicar ambas as teorias ao mesmo tempo.

Embora os comentaristas gostem de traçar paralelos com o New Deal de Franklin Roosevelt, na verdade as medidas anunciadas desde que a crise estourou, em agosto de 2007, têm uma semelhança mais próxima com aquelas tomadas durante as duas guerras mundiais. Depois de 1914, e novamente depois de 1939, houve intervenções governamentais massivas no sistema financeiro. Bancos e mercados de títulos foram reduzidos a meros canais para o financiamento de gigantescos déficits do setor público. Isso é o que está acontecendo hoje, mas sem o estímulo para a indústria que as guerras mundiais ofereceram. Estamos sob uma economia de guerra, mas sem uma guerra propriamente dita.

O efeito dessas políticas, no entanto, é essencialmente o de acumular uma nova camada de dívida pública em cima da montanha de dívidas já existente. Somados, os empréstimos, investimentos e garantias feitos pelo Fed e pelo Tesouro no último ano chegam a um total de cerca de 7,8 trilhões de dólares, comparados com uma dívida federal pré-crise de cerca de 10 trilhões. O Tesouro talvez tenha de emitir até 2,2 trilhões em títulos da dívida pública no ano que vem. No momento, a demanda por dólares e ativos sem risco, motivada pelo nervosismo, está empurrando os custos de toda essa farra de endividamento para baixo. Os dividendos pagos pelos títulos do Tesouro estão em uma baixa histórica. Mas não é um fato insignificante que o custo dos seguros contra calotes do governo federal tenha se multiplicado por 25 em pouco mais de um ano. Em algum momento, com as maiores economias do mundo adotando a mesma política fiscal, os mercados globais de títulos vão começar a sufocar.

É realmente plausível que a cura para a alavancagem excessiva no setor privado seja a alavancagem excessiva no setor público? Não existiria um caminho mais seguro para prosseguir?

Quando economistas falam em "desalavancagem", eles geralmente têm em mente um processo um tanto lento, por meio do qual empresas e lares aumentam a poupança de forma a quitar suas dívidas. Mas o paradoxo da poupança é que um esforço deliberado nesse sentido vai empurrar uma economia como a americana ainda mais para a recessão.

A alternativa deve ser um corte radical da dívida. Historicamente, tais cortes foram feitos de uma das quatro maneiras seguintes: calote puro e simples, reestruturação (ou seja, falência), inflação ou conversão de dívidas. No momento, mais e mais lares americanos estão escolhendo o primeiro caminho para lidar com o problema do patrimônio negativo, enquanto mais e mais empresas são levadas à falência. Falências em massa não são uma perspectiva agradável.

Inflação, em contraste, causa pouca preocupação no curto prazo, até porque a expansão da base monetária pelo Fed não tem levado a uma expansão proporcional da oferta de dinheiro: os bancos preferem enxugar a engordar suas folhas de empréstimos.

Sobra a conversão, pela qual, por exemplo, todas as dívidas hipotecárias existentes poderiam ser integral ou parcialmente transformadas em empréstimos de longo prazo, com juros baixos e fixos, como sugerido recentemente por Martin Feld-stein, de Harvard. (Nesse esquema, o governo ofereceria a qualquer proprietário de casa com hipoteca uma opção para substituir 20% da hipoteca por um financiamento a juros baixos do governo, com teto de 80.000 dólares. Os juros poderiam ser de apenas 2% ao ano, e o financiamento seria amortizado em trinta anos. Isso salvaria muitos proprietários do pesadelo de ter um patrimônio negativo.) Uma operação similar poderia também ser considerada para as dívidas daqueles bancos que foram parcial ou totalmente recapitalizados pelo estado. Isso não agravaria o débito nacional em termos brutos e reduziria a carga dos juros e talvez até a carga das dívidas pessoais.

Tais medidas radicais naturalmente representariam um corte nos ganhos relativos dos credores, especialmente os detentores de títulos lastreados em hipotecas ou títulos bancários. Mas elas seriam com certeza preferíveis às alternativas. E seriam certamente uma solução menos extrema do que o cancelamento geral das dívidas previsto no Velho Testamento.

Essas medidas radicais vão se provar politicamente exeqüíveis no ano que começa? Para responder a essa pergunta, eu me vali da famosa Máquina do Tempo da Universidade Harvard e me transportei a um ano no futuro, para ver como VEJA vai resumir o primeiro ano do governo Barack Obama. Eis o que encontrei:

OS PRIMEIROS DOZE MESES DE OBAMA NA CASA BRANCA

"A necessidade será a mãe da invenção", declarou o presidente Obama no seu discurso de posse, em 20 de janeiro de 2009. "Investindo em inovação, podemos restaurar nossa fé na criatividade americana. Precisamos construir novas escolas, não novos shopping centers. Precisamos produzir energia limpa, não derivativos sujos."

Era uma manhã de frio intenso, mas as palavras de Obama aqueceram o país e o mundo. Os comentaristas concordaram que sua fala foi comparável ao discurso de Franklin Roosevelt em 1933. Roosevelt, no entanto, falara depois que o pior da Depressão já havia passado. Obama estava então no meio da tempestade. A retórica alçou altos vôos, mas os mercados afundaram ainda mais. O contágio espalhou-se inevitavelmente das hipotecas subprime para as prime, para as propriedades comerciais, para as ações corporativas e de volta para o setor financeiro. Pelo fim de junho, o S&P 500 caíra para 624 pontos, o mais baixo índice mensal desde dezembro de 1995, e cerca de 60% abaixo do seu pico, em outubro de 2007.

O cerne do problema era a insolvência dos maiores bancos, uma realidade que os responsáveis pela política econômica tentavam ocultar. Os bancos simplesmente não conseguiam pôr em ordem seus balanços por causa de uma série de linhas de crédito pré-aprovadas, às quais seus clientes recorriam, em desespero, enquanto a única fonte de capital renovado para os próprios bancos era o Tesouro dos Estados Unidos, que tinha de se haver com um Congresso cada vez mais cético. As outras instituições criadoras de crédito – especialmente os mercados para títulos lastreados em ativos financeiros – estavam praticamente paralisadas.

Houve alvoroço quando o secretário do Tesouro, Timothy Geithner, requisitou 300 bilhões de dólares adicionais para dar novas injeções de capital ao Citigroup, ao Bank of America e aos outros sete grandes bancos, apenas uma semana depois de impor uma sofrida "megafusão" à indústria automobilística. Em Detroit, as Três Grandes montadoras haviam se tornado apenas a Única Grande, com a formação da CGF (Chrysler-General Motors-Ford; a imprensa americana inevitavelmente rebatizou a empresa de "Can't Get Funding" – não consegue fundos). Os bancos, em contraste, pareciam gozar de infinito financiamento público. No entanto, nenhuma quantia de dinheiro parecia suficiente para convencê-los a oferecer novos créditos à população, a juros mais baixos. Como um deputado indignado de Michigan observou: "Ninguém quer encarar o fato de que essas instituições (os bancos) estão quebradas. E não é apenas que elas tenham perdido todo o capital. Se colocássemos seus ativos no mercado de verdade, elas os perderiam duas vezes. As Três Grandes nunca foram tão mal administradas quanto esses bancos corruptos".

No primeiro trimestre de 2009, o Fed continuou a fazer tudo em seu poder para impedir a deflação. A taxa dos fundos federais já estava efetivamente em zero pelo fim de 2008. Embora isso não fosse admitido oficialmente, a facilitação quantitativa (quantitative easing) começou de fato em novembro de 2008, com compras em larga escala de títulos hipotecários ou da dívida de agências patrocinadas pelo governo (os gigantes das hipotecas renacionalizados, Fannie Mae e Freddy Mac), e a promessa de futuras compras de títulos do governo. Mas o remédio da expansão da base monetária foi neutralizado pela contração dos depósitos bancários de curto prazo. Os bancos em recuperação estavam sugando a liquidez quase tão rápido quanto o Fed conseguia criá-la. Nesse passo, o Fed parecia um hedge fund do governo, altamente alavancado e com um balanço composto de ativos dos quais todo o mundo gostaria de se livrar.

A posição do governo federal não era muito melhor. Já em fevereiro de 2009 ficou claro para o presidente e seus conselheiros que as finanças federais estavam saindo do controle. Com o déficit público projetado para exceder 1,5 trilhão de dólares, Obama ficou sob intensa pressão do seu assessor-chefe econômico, Lawrence Summers, para adiar a planejada reforma no sistema de saúde, assim como o aumento nos gastos em educação, pesquisa e ajuda a outras nações.

Obama pretendia montar uma administração em que os seus rivais e aliados estariam representados de maneira equilibrada. Mas os rivais eram bem mais experientes que os aliados. O resultado disso foi uma administração que falava como Barack Obama, mas pensava como Bill Clinton. Os veteranos da era Clinton, entre eles a secretária de Estado, Hillary Clinton, tinham viva na memória a volatilidade do mercado de títulos que os flagelou em 1993 (levando o administrador de campanha James Carville a dizer que, se houvesse reencarnação, ele gostaria de voltar um dia como mercado de títulos). Aterrorizados pelo déficit crescente, os veteranos insistiram para que Obama recusasse qualquer gasto cujo propósito fosse outro que não acabar com a crise financeira.

Mas o mundo havia mudado desde o início dos anos 90. Apesar dos temores do ainda influente Robert Rubin, ex-secretário do Tesouro, investidores de todo o mundo estavam mais do que felizes em comprar novos papéis americanos, não importava a quantidade. Ao contrário do senso comum, a quadruplicação do déficit não levou à queda no preço dos títulos nem ao aumento dos juros. Em vez disso, a procura por ativos mais seguros e as pressões deflacionárias desencadeadas pela crise ao redor do mundo puxaram as taxas de juros para baixo. Elas ficaram por volta de 3% durante o ano todo.

Também não houve o colapso do dólar, como muitos temiam. O apetite externo pela moeda americana se manteve, mesmo com a impressão acelerada de dinheiro pelo Fed. O valor real efetivo da moeda americana (comparado a uma cesta de moedas) caiu levemente em 2009.

Aqui estava a ironia no coração da crise. Das mais variadas maneiras possíveis, a Grande Repressão tinha o carimbo Made in USA em tudo. Mas seus efeitos foram mais graves no resto do mundo que nos Estados Unidos. E, como conseqüência, o país conseguiu reter seu status de "porto seguro". O pior aconteceu na Europa, no Japão e nos mercados emergentes, pela prontidão dos investidores em comprar títulos do Tesouro americano e reter dólares.

O ano de 2009 provou-se um pesadelo para o resto do mundo. O Japão foi jogado de volta para o pesadelo deflacionário dos anos 90 pela valorização do iene e pelo colapso da confiança dos consumidores. As coisas estavam um pouco melhores na Europa. Houve muita acusação antiamericana por parte dos governantes europeus em 2008. O presidente francês, Nicolas Sarkozy, falou na cúpula do G-20 em Washington como se pudesse salvar a economia mundial sozinho. O primeiro-ministro inglês, Gordon Brown, tentou dar uma impressão semelhante, reivindicando a autoria da política de recapitalização bancária. A chanceler alemã, Angela Merkel, por sua vez, manifestou sua desaprovação ao déficit americano excessivamente grande.

No fim do primeiro trimestre de 2009, no entanto, o humor na Europa mudou para pior. Ficou claro que os problemas dos bancos europeus eram tão sérios quanto os dos americanos. De fato, as dívidas de curto prazo dos bancos belgas, suíços, ingleses e italianos eram maiores que as economias de seus países, enquanto os bancos alemães, franceses e dinamarqueses estavam ainda mais perigosamente endividados. Além disso, na ausência de um Ministério das Finanças para toda a Europa, a conversa sobre um pacote de estímulo europeu não passou disso – mera conversa. Na prática, a política fiscal tornou-se um caso de sauve qui peut (salve-se quem puder), com cada país europeu improvisando seus próprios planos de socorro financeiro e pacotes de estímulo. O resultado foi uma bagunça. Moedas fora da zona do euro foram afetadas por volatilidades graves. Dentro da zona do euro, a instabilidade estava no mercado de títulos, com o retorno dos títulos gregos e italianos explodindo em relação aos alemães.

O cenário era ainda pior na maioria dos mercados emergentes. No Leste Europeu, Bulgária, Romênia, Ucrânia e Hungria foram atingidas de forma especialmente dura. Entre os Brics (Brasil, Rússia, Índia e China), o Brasil teve o melhor ano e a Rússia, o pior. Foi um ano terrível para exportadores de petróleo e gás natural, porque o preço desses produtos caiu, levando consigo moedas como o rublo russo. O mercado de ações indiano, por sua vez, foi prejudicado pelas tensões crescentes entre Nova Délhi e Islamabad como conseqüência dos ataques terroristas em Mumbai.

A instabilidade política também afetou a China, onde protestos de trabalhadores recém-demitidos em Shenzen e em outros centros exportadores provocaram uma repressão pesada por parte do governo, mas também um esforço renovado do Banco Popular da China para prevenir a valorização do iuane, através da compra de mais algumas centenas de bilhões de dólares em títulos do Tesouro americano. A "Chimérica" – a relação simbiótica entre a China e os Estados Unidos – não apenas sobreviveu à crise, como ganhou com isso. Ainda que alguns liberais ficassem assombrados com a decisão do presidente Obama de participar da primeira cúpula do G-2 em Pequim, em abril, a maioria reconheceu que o comércio deveria se sobrepor à questão do Tibete em um período de crise econômica como aquele.

Esse caráter assimétrico da crise global – o fato de que o choque foi maior na periferia que no epicentro – teve lá suas desvantagens para os Estados Unidos, é verdade. Qualquer esperança de que os Estados Unidos pudessem escapar de seu fardo de dívida externa desapareceu quando as taxas de juros de dez anos e o dólar se mantiveram firmes. Tampouco os industriais americanos ganharam novo fôlego com o renascimento das exportações, o que aconteceria se o dólar tivesse afundado. O mérito do Fed foi manter a inflação em um nível aceitável – só isso. Aqueles que temiam inflação galopante e o fim do dólar como moeda de reserva ficaram confusos.

Por outro lado, os problemas enfrentados pelo resto do mundo significavam que, em termos relativos, os Estados Unidos saíram ganhando, tanto política como economicamente. Muitos analistas haviam advertido em 2008 que a crise financeira seria o prego derradeiro no caixão da credibilidade americana no mundo. Primeiro, o neoconservadorismo foi desmoralizado com o Iraque. Em seguida, o "Consenso de Washington" sobre o livre mercado teria fracassado. Um dos best-sellers de 2008 foi o livro O Mundo Pós-Americano, de Fareed Zakaria. Muita gente imaginou que esse mundo fosse ganhar a certidão de nascimento em 2009.

Essa visão ignorava dois fatos. O primeiro é que a maioria dos outros sistemas econômicos reagiu de forma ainda pior que o americano quando a crise bateu. Aqueles que criticaram os Estados Unidos de maneira mais veemente – Rússia e Venezuela – sofreram as maiores quedas. O segundo fato foi o enorme reforço que a reputação internacional dos Estados Unidos ganhou após a posse do presidente Obama.

Se ainda havia necessidade de provas de que a Constituição americana seguia funcionando, aqui estava uma. Se ainda havia necessidade de provas de que os Estados Unidos haviam apagado o seu pecado original de discriminação racial, aqui estava ela. E se ainda era preciso provar que os americanos eram pragmáticos, não ideólogos, aqui estava. O New New Deal de Obama – anunciado depois do expurgo da turma dos Clinton no Dia dos Trabalhadores – não produziu nenhum milagre econômico. Ninguém esperava por isso. Mas a tomada de controle dos grandes bancos pelo estado e a conversão das dívidas de hipotecas privadas em títulos conhecidos como "Obametas" (Obamabonds) de cinqüenta anos sinalizaram um prestígio impressionante por parte do novo presidente.

O mesmo valeu para a decisão de Obama de viajar para Teerã em junho de 2009 – uma decisão que contribuiu mais do que qualquer outra coisa para azedar as relações com Hillary Clinton (os simpatizantes dessa última não engoliram a visão da ex-candidata presidencial coberta por um véu islâmico). Não que a assim chamada "abertura ao Irã" tenha produzido alguma melhoria dramática da situação no Oriente Médio. Tampouco alguém esperava por isso. Mas, assim como a visita de Richard Nixon à China em 1972, a de Obama ao Irã simbolizou a disposição do presidente em repensar toda a grande estratégia americana. E a queda do presidente Mahmoud Ahmadinejad – seguida pela desistência do país de seu programa de armas nucleares – foi em si um prêmio significativo. Com sua economia prostrada, os pragmáticos de Teerã estavam finalmente prontos para fazer a paz com o Grande Satã, em troca dos tão necessários investimentos.

Enquanto isso, a tentativa fracassada da Al Qaeda de assassinar Obama às vésperas das comemorações de Ação de Graças – que matou centenas de cidadãos comuns de Chicago, mas deixou o presidente incólume – apenas serviu para desacreditar ainda mais o islamismo radical e para reforçar a imagem pública de Obama como "O Escolhido". Outra das muitas ironias de 2009 foi que o renovado sentimento religioso desencadeado pela crise econômica beneficiou os democratas e não os republicanos, profundamente divididos.

No fim de 2009, era possível detectar pela primeira vez – em vez de apenas torcer por isso – o começo do fim da Grande Repressão. A espiral descendente do mercado imobiliário americano e do sistema bancário foi finalmente interrompida por medidas radicais que a administração a princípio hesitava em tomar. Ao mesmo tempo, os problemas econômicos muito maiores no resto do mundo deram ao presidente Obama a oportunidade única de assegurar a liderança americana, principalmente na Ásia e no Oriente Médio.

A "fase unipolar", sem dúvida, havia acabado. Mas o poder é um conceito relativo, como o presidente lembrou em sua última entrevista coletiva do ano: "Houve quem nos avisasse de que os Estados Unidos estavam fadados a decair. E todos nós certamente ficamos mais pobres neste ano. Mas se esqueceram de que, se os outros decaíssem ainda mais, os Estados Unidos ainda ficariam na frente. Afinal, em terra de cego, quem tem um olho é rei".

E, com uma piscadela, o presidente Obama desejou ao mundo um feliz Ano-Novo. O jubileu chegara ao fim.

Obviamente, não existe uma Máquina do Tempo de Harvard, e eu não tenho como saber o que o próximo ano vai nos trazer. Há, sim, um passado, ainda que possamos discutir infinitamente sobre o que aconteceu. Mas não existe um futuro, no singular – apenas múltiplos futuros que nós tratamos de escolher.

Eu realmente espero que, se os remédios monetaristas e keynesianos para a Grande Repressão se provarem insuficientes, a administração Obama – e, também, governos ao redor do mundo – considere a possibilidade de adotar medidas mais radicais para reduzir o peso da dívida, que é, hoje, nosso maior problema.

Eu também espero que, quaisquer que sejam as tempestades políticas causadas pela crise financeira, não haja uma repetição do colapso da globalização que se provou tão devastador nos anos 30.

Acima de tudo, eu espero que a crise nos lembre da necessidade de voltar às raízes. Não me refiro apenas a ler o Velho Testamento, ainda que isso não faça mal algum. Quero dizer com isso que nós deveríamos voltar aos princípios básicos da história econômica e financeira. O futuro da prosperidade do mundo não pode se basear na capacidade dos americanos de tomar empréstimos sem limites e comprar até cair. Tem de se basear, como toda a prosperidade passada, no desenvolvimento, na adoção e na distribuição de tecnologia de alta produtividade.

Na era do endividamento, nós perdemos de vista essa verdade fundamental. Quando finalmente emergirmos de baixo desta montanha de dívidas, estará mais do que na hora de redescobrir essa verdade.