quarta-feira, dezembro 24, 2008

A última do português


A partir de 1º de janeiro, os brasileiros passam a
escrever diferente: caem o trema e alguns acentos,
mudam as regras do hífen – e instalam-se as dúvidas.
O novo acordo ortográfico, enfim, é uma dessas
decisões sobre as quais não parece haver acordo


Isabela Boscov

Lalo de Almeida/Sambaphoto
LÍNGUA TEM DONO?
O Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo: os defensores do acordo
dizem que, se o espanhol tem uma grafia única, nós também podemos
tê-la; os seus críticos afirmam que as regras não são boas e
que unificar nem é desejável


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Quadro: As principais mudanças
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Agora, como se diz, Inês é morta. A partir deste 1º de janeiro, quando no Brasil começa a vigorar o novo acordo ortográfico firmado entre os países de língua portuguesa, as idéias perderão um pouquinho de altura e virarão ideias; já os vôos, livres do circunflexo e transformados em voos, ganharão teto; o anti-semitismo não terá mais o hífen, passando a ser antissemitismo, mas não perderá sua feiúra – que, no primeiro dia de 2009, amanhecerá simplesmente feiura. Para os que foram alfabetizados já dentro das normas da última reforma ortográfica, a de 1971, o ano vai começar repleto não apenas das resoluções habituais, como também de dúvidas. Para os que aprenderam a escrever entre a reforma de 1943 e a de 1971 e ainda acham estranho escrever ele sem um bom circunflexo no e tônico, os problemas se multiplicam. E, para aqueles que estudaram em cartilhas ainda mais antigas, com seus prohibidos e collocar, as esperanças de reformar a própria ortografia são mínimas.

Cozido em fogo brando desde 1986, esquecido e então requentado, o acordo que pretende unificar a maneira como os cidadãos lusófonos do mundo grafam seu idioma é uma dessas decisões sobre as quais, ironicamente, quase nenhum acordo é possível. Uma das raras concordâncias dos gramáticos: o aprendizado da ortografia está estreitamente ligado à memória visual e manual. A mão "puxa" a palavra, em um processo de assimilação que começa no primeiro banco de escola. Driblar essa memória da mão é árduo. Um segundo ponto de consenso: o acordo não está em um estágio ótimo de maturação. E aí começam as divergências. Para alguns estudiosos, ele não é nem sequer bom; para outros, é bom o suficiente. "E bom, depois de mais de 100 anos tentando colocar o português nos trilhos do bom senso, já está de bom tamanho", diz Evanildo Bechara, titular da área de lexicografia e lexicologia da Academia Brasileira de Letras e decano dos gramáticos brasileiros, que liderou a etapa final de negociação do acordo.

O novo acordo não reforma a língua portuguesa. Essa continua a mesma, sujeita às evoluções naturais de todas as línguas e ampla o bastante para abarcar as diferentes maneiras como é usada nos oito países em que é idioma oficial (veja o mapa abaixo). O que o acordo tenta atender é a aspiração – acadêmica, sobretudo – a uma grafia única, em que as diferenças sejam reduzidas ao mínimo. No português, essas diferenças incidem nos aspectos que merecem a classificação de "fatos da língua", e não de "fatos da ortografia". Um exemplo: polêmica e polémica têm e manterão grafia diversa no Brasil e em Portugal porque são pronunciadas de forma diversa. Deste lado do Atlântico, consagramos pelo uso o e fechado. Já os lusófonos originais preferem o e aberto. Por isso também os portugueses continuam a reflectir, enquanto aqui refletimos, se o acordo é acessível. Eles emitem o som daquele c a mais; nós, não. Esses são "fatos da língua", que ninguém pretende reformar. O que o acordo quer eliminar são os sinais que – supostamente – nada mais exprimem. Como o circunflexo que deixará de existir em enjoo ou o acento agudo de heroico, abandonados por Portugal desde 1945. Na mão inversa, os portugueses deixarão de escrever adoptar e colecção, passando a adotar e coleção, porque na verdade não pronunciam aquele p e aquele c. "Não os pronunciamos, assim como o c de actor ou o p de cepticismo, mas eles carregam informação fonética, já que ‘forçam’ a tônica da palavra", argumenta o jornalista e escritor português João Pereira Coutinho, autor de uma excelente coluna na Folha de S.Paulo.

Coutinho, que em seus textos para o jornal usa as versões brasileiras de vocábulos (como fumante em vez de fumador), acha que o acordo é um "brutalíssimo erro" – de natureza científica, por sua visão concentradora da língua, de natureza política, já que os países africanos mal foram consultados na sua elaboração, e também de ordem filosófica, porque procura aniquilar as diferentes músicas, por assim dizer, que se ouvem ao ler textos em grafias diversas da nativa. Ele resume, assim, as críticas disparadas pelos detratores do acordo. Mas outros aspectos pesam na discussão. Há, por exemplo, as visões diversas sobre a natureza da ortografia. Alguns gramáticos de peso postulam que, como tudo o mais num idioma, também ela deve mudar ou não segundo os ditames do uso, sem interferência de academias; outros gramáticos, igualmente de peso, crêem (ou, a partir de janeiro, creem) que não existe razão para o português abranger duas grafias oficiais quando idiomas mais difundidos, como o espanhol, com seus 400 milhões de usuários e 22 academias de letras, só precisam de uma. O grosso das objeções, contudo, se dirige aos termos específicos do presente acordo.

O texto capitaneado durante parte das décadas de 80 e 90 pelos acadêmicos Antônio Houaiss (daqui) e João Malaca Casteleiro (de lá) contém vários pontos facultativos, muitas imprecisões e grande quantidade de etecéteras. Importante: esse texto não foi revisto. Ele foi assinado, na forma redigida lá atrás, em 29 de setembro último. E, do jeito que está, abre espaço para interpretações subjetivas e para a continuidade de diferenças em "fatos de ortografia" entre Portugal, Brasil e os outros signatários. "Portugal e Brasil são como dois navios singrando paralelos, que se acenam a uma distância de 20 metros. Quando o acordo entrar em vigor, a distância será reduzida em 3 metros, que não valem o imenso custo da reforma", opina Cláudio Moreno, doutor em letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Esse custo é tanto social como financeiro. A partir de 2010, os ministérios da Educação e da Cultura só autorizarão a compra de livros que sigam a nova ortografia. Em tempo, todas as bibliotecas escolares do país terão de ser renovadas, ainda que seu conteúdo não se tenha tornado superado. E todos os dicionários terão de ser reeditados (estima-se que apenas o Ministério da Educação encomendará 8 milhões de exemplares nos próximos anos). Uma parte significativa desse movimento editorial será custeada pelo contribuinte. Ninguém definiu, ainda, como os milhares de professores do país serão treinados – nem como garantir que o contingente de despreparados para a função (que é grande, imenso) não se acrescente à confusão de alunos que mal e mal conseguem escrever um bilhete. "Estamos fazendo a reforma no susto", critica o professor Pasquale Cipro Neto, um dos mais dedicados gramáticos do Brasil.

Cipro Neto conta uma história divertida. Num vagão de trem, em Portugal, sentou-se à frente dele uma senhora que lia um tablóide policial intitulado O Crime. O professor leu e releu as manchetes – e não entendeu metade delas. Não por razões remotamente relacionadas à ortografia, claro, mas pelas expressões que, num texto de cunho popular, tornam o português lusitano quase estrangeiro para um brasileiro – o que faz pensar na blague do escritor Oscar Wilde segundo a qual americanos e ingleses eram povos separados por uma mesma língua. Ora, o princípio que norteia o acordo ortográfico é o de facilitar o trâmite do português no mundo. Mas as diferenças de grafia na norma culta da língua são mínimas e não interferem na sua compreensão. As dos textos educativos e literários provenientes das diferentes nações lusófonas podem ser lidas e compreendidas em qualquer rincão do mundo em que se fale o português. Muitos dos escritores de Portugal vetam qualquer alteração ortográfica ou de vocabulário nas edições brasileiras de seu texto, e não consta que tenham perdido um só leitor por esse motivo. Já as diferenças culturais e de uso da língua entre os signatários do acordo são, conforme o caso, impenetráveis, como constatou Cipro Neto em sua inspeção de O Crime. Elas é que tornam tão rica a experiência de um idioma compartilhado por várias nações. E são elas que, na prática, impedirão, por exemplo, a difusão de material didático brasileiro em países lusófonos da África, como chegaram a sonhar as editoras.

Na maioria das línguas, a ortografia evoluiu e se consolidou no decorrer de séculos, obedecendo a uma necessidade de ordem numérica: quanto maior o número de "usuários" regulares da linguagem escrita, maior também a necessidade de que se chegasse a formas consensuais para grafá-la. A ortografia inglesa terminou por cristalizar-se numa forma muito próxima da atual com a explosão do mercado editorial no século XIX. Nunca houvera tanta gente escrevendo, publicando e lendo – e assim sedimentando regras. A ortografia dos idiomas, assim, tem uma infância, uma juventude e uma maturidade. Quando Pero Vaz de Caminha escreveu ao rei de Portugal anunciando a descoberta do Brasil, em 1500 (veja o quadro), a grafia do português estava na sua infância. As poucas pessoas alfabetizadas do período escreviam conforme ouviam, em grafias díspares, quase pessoais, e aproximadas da que era então a língua do saber – o latim. Como na maioria dos idiomas, também os grandes escritores tiveram papel preponderante na fixação da ortografia portuguesa. Até hoje escrevemos Cingapura com c, e não com s, como nas outras línguas de origem européia, porque Luís de Camões (1524-1580), o fundador da literatura em língua portuguesa com a epopéia Os Lusíadas, assim grafou a palavra. Na virada do século XIX para o XX, a ortografia portuguesa estava já transitando da juventude para a idade adulta: lendo-se as edições originais de autores como Eça de Queiroz e Machado de Assis podem-se contar uns tantos circunflexos e consoantes dobradas, mais uns phs e chrs, que caíram em desuso – mas nada que faça o leitor tropeçar nas linhas, como na hoje quase indecifrável carta de Caminha.

Segundo explica Mauro Villar, filólogo do Instituto Houaiss e defensor do novo acordo, o passo decisivo para a maturidade foi dado pelo foneticista português Gonçalves Viana, que em 1904 publicou o livro Ortografia Nacional, de importância incalculável na análise das tendências fonéticas do idioma e das notações que melhor as traduzem. Em 1911, Portugal adotou a ortografia de Viana como a oficial, no que foi seguido depois pelo Brasil. Na década de 40, contudo, os dois países tomaram caminhos diversos. Em 1943, por decisão do presidente Getúlio Vargas, fez-se uma reforma que eliminou inconsistências e unificou internamente a ortografia. Em 1945, Portugal propôs uma outra reforma – a que eliminou o trema e outros acentos que agora vão cair aqui. O Brasil chegou a assiná-la, mas recuou. Daí a existência de duas ortografias oficiais para o português.

Pelos termos do acordo promulgado em setembro deste ano, os brasileiros terão quatro anos para se adequar às novas regras, e os portugueses, seis. Na opinião de Pasquale Cipro Neto, uma vez que os grandes jornais e revistas do país (inclusive VEJA e todas as outras publicações da Editora Abril) passarão a escrever pela nova ortografia a partir deste 1º de janeiro, a reforma logo deve ganhar contorno de fato consumado. A hifenização, que um amigo do acadêmico Evanildo Bechara certa feita chamou "infernização", deverá ser a maior dificuldade. As regras antigas eram difíceis, e as novas continuam a sê-lo. "Ninguém sabia usar o hífen, e todos permanecerão sem sabê-lo", diz Cipro Neto. Manual, só no fim de fevereiro. Esse é o prazo dado pela editora Global para colocar na praça o Vocabulário Ortográfico oficial, uma "bula" com 360.000 palavras cujos originais Bechara e seus colaboradores entregaram na semana passada. Tudo resolvido? Nem tanto. No que depender do próprio Bechara, um cavalheiro cujo conhecimento da língua só é comparável à sensatez, o Vocabulário Ortográfico talvez venha a precisar de uma edição revista ao fim dos quatro anos de adaptação. "Poderíamos imaginar uma regra pela qual só se usaria hífen se, ao juntar dois termos, a pronúncia saísse errada. Um exemplo é o de ‘sub-região’. Sem hífen, o desavisado poderia ler ‘su-bregião’. Se, com a junção, a pronúncia não mudar, nada de hífen", especula o estudioso. Seria mesmo lindo, e fácil, e coerente. Mas vai acontecer? "Ora, tenham um pouco de fé no bom senso dos acadêmicos daqui e de lá." E o bom senso, enfatize-se, nunca precisou de hífen para ser bom.

Fotos Museu Nacional de Belas Artes e reprodução
E NO PRINCÍPIO...
A Primeira Missa realizada no Brasil, um dos eventos descritos por
Pero Vaz de Caminha, na versão do pintor Victor Meirelles, e, à direita,
Luís de Camões, fundador da literatura em língua portuguesa: a grafia
de um idioma tem infância, juventude e maturidade

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