sábado, novembro 29, 2008

Espionagem O homem-chave do caso Abin-PF

O ROSTO CLANDESTINO
DA ABIN

VEJA localizou o espião que, por descuido, revelou a
atuação da inteligência oficial em operação secreta.
Ex-segurança do presidente Lula, o tenente Antônio
Leandro está lotado no Gabinete de Segurança Institucional


Expedito Filho

Fotos Manoel Marques e Marcello Casal Jr.
HISTÓRIA DE COBERTURA
O general Jorge Felix, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, criou um mal-estar dentro do Palácio do Planalto ao inventar uma história para ocultar a identidade e a verdadeira missão do espião que fora requisitado da PM de São Paulo para a equipe de segurança do presidente da República

Os espiões figuram no imaginário coletivo como pessoas discretas, misteriosas, dotadas de habilidades especiais e normalmente envolvidas em missões perigosas e secretas. Exceto em relação ao último quesito, o tenente Antônio Leandro de Souza Júnior, que aparece na foto ao lado, pouco tem a ver com esse perfil. Policial militar de São Paulo, em seus registros funcionais consta que ele foi requisitado em 2005 pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI), no Palácio do Planalto, para integrar a equipe de segurança do presidente Lula. Recentemente, porém, seu nome apareceu na lista dos 84 espiões da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) que atuaram na operação que investigou o ex-banqueiro Daniel Dantas. O que apenas um círculo muito restrito do poder sabe é que foi graças a um descuido do tenente Leandro que eclodiram as primeiras pistas sobre a ação clandestina dos agentes do estado e, por conseqüência, a revelação da existência de uma rede de espionagem ilegal que monitorava políticos, jornalistas e autoridades, entre elas o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, que teve seus telefones criminosamente grampeados pelos espiões a serviço da Abin. VEJA localizou o tenente Leandro de Souza em Jundiaí, cidade distante 63 quilômetros de São Paulo.

Alan Marques/Folha Imagem
ALVO INDIRETO
Gilberto Carvalho, chefe-de-gabinete de Lula: transformado em suspeito depois de receber informações falsas repassadas pelo GSI sobre o flagrante do espião que atuava no Rio de Janeiro


Para entender seu papel no episódio é preciso retroceder a 27 de maio passado. Naquele dia o tenente Leandro foi flagrado por policiais da Delegacia Anti-Seqüestro do Rio de Janeiro em "atividade suspeita" numa avenida da Zona Sul da cidade. Estava a bordo de um Astra prata de propriedade da Abin, estacionado em frente a um prédio de apartamentos. Inquirido sobre o que fazia ali, o militar exibiu uma identidade funcional da Presidência da República e se identificou como "tenente Marcos". E, seguindo a versão oficial divulgada pela Abin na ocasião, respondeu que estava em missão sigilosa de acompanhamento de "espiões russos". De maio até os dias atuais, a versão de Leandro mudou bastante. Em entrevista concedida na porta de sua casa, no domingo, 23, o tenente disse que naquele dia seguia os passos de um empresário, mas que "não sabia quem era". Ele confirma ter recebido a missão de seus superiores da Abin, mas nega que tenha se identificado como tenente Marcos e que tenha dito que vigiava a atividade de espiões russos. Leandro conta que só soube posteriormente que seu alvo se chamava Humberto Braz, um ex-sócio e atual lobista do ex-banqueiro Daniel Dantas. Diz o tenente: "Eu não sou louco de mentir, apresentar um documento falso, uma história falsa, e levar um tiro".

A confissão do espião, que continua vinculado ao Gabinete de Segurança Institucional, constrange e cria enormes embaraços para seu chefes – o ministro Jorge Felix, do GSI, e o delegado Paulo Lacerda, diretor afastado da Abin. O tenente não poderia estar ali, dentro do Astra, vigiando russos, alemães ou lobistas de ex-banqueiros encrencados com a polícia e a Justiça, como é o caso de Daniel Dantas. Mas estava. Foi abordado por policiais que suspeitaram dele e acabou abrindo a brecha que escancarou toda a gama de abusos e ilegalidades da operação da qual ele participava, segundo ele próprio, sem saber do que se tratava. Essa operação, batizada de Satiagraha, já entrou para a história das polícias por ter produzido o mais risível e destrambelhado relatório de todos os tempos, escrito em um idioma com enorme parentesco com o português, que teve de ser reescrito recentemente de modo que ganhasse um mínimo de lógica interna. O alvo principal da investigação é o tal ex-banqueiro Daniel Dantas, um tipo sempre encrencado com a Justiça e a polícia, que se julga mais esperto do que a esperteza e que, fossem os policiais menos amadores, já teria sido facilmente flagrado em delito.


Lula Marques/Folha Imagem

FALSO TESTEMUNHO
Paulo Lacerda, o diretor afastado da Abin, tentou de todas as formas esconder a real dimensão do trabalho de seus espiões na investigação policial sobre o ex-banqueiro Daniel Dantas

A abordagem ao tenente Leandro no Rio de Janeiro foi um desastre especial para a Operação Satiagraha. Como parecia tratar-se de um segurança do Palácio do Planalto, o governo federal foi logo informado da abordagem. A comunicação foi feita a Gilberto Carvalho, o mais próximo e influente assessor do presidente Lula. Carvalho fez o que deveria fazer. Levou as informações que acabara de receber ao general Felix, que não mostrou surpresa e saiu-se com a extraordinária versão dos "espiões russos". Carvalho engoliu a história e a passou adiante. Uma das pessoas a quem ele contou essa versão, por telefone, foi o advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, petista histórico, seu amigo pessoal de muitos anos e que, algum tempo atrás, fora contratado pelo ex-banqueiro encrencado, esperto, Daniel Dantas. Como o advogado do ex-banqueiro estava sendo monitorado pelos policiais e pela Abin, a conversa foi interceptada. Sem saber, portanto, o tenente Leandro havia levado a investigação para a ante-sala do presidente Lula no Palácio do Planalto. Carvalho se tornara mais um dos alvos da equipe de policiais e espiões da Abin chefiada pelo nefelibata delegado Protógenes Queiroz. "Tudo o que eu fiz foi tentar ajudar um amigo. Se tivessem me dito que o episódio era parte de uma investigação policial, é óbvio que teria me silenciado", diz Carvalho, o assessor que por algum tempo foi levado por uma mentira a pensar que o Brasil estava sendo alvo de ações hostis por parte da Rússia.

Obviamente, a mentira do general Jorge Félix não foi digerida por Gilberto Carvalho. Em depoimento à CPI dos Grampos, tanto o general quanto Lacerda revelaram que a tal missão de acompanhamento de espiões russos era uma "história de cobertura". "Foi uma história de cobertura porque a investigação era sigilosa", confessou o ministro-chefe do GSI. No jargão dos arapongas, isso quer dizer que o general e seu delegado contaram uma mentira para preservar o segredo de uma operação. Chefes de serviços de inteligência que mentem para os assessores dos presidentes e para os próprios presidentes não são propriamente uma novidade, tampouco uma invenção brasileira. Os historiadores dos serviços secretos americano, CIA, e soviético, KGB, convergem em um ponto: eles mentem para os presidentes, que mentem para o público. Essa é a lei nesse reino paralelo. A natureza do trabalho dos espiões acaba por convencê-los de que são pessoas acima das leis e das instituições.


Sérgio Castro/AE
ANTES DE SER PRESO
O empresário Humberto Braz, lobista de Dantas, achava que seqüestradores estavam vigiando seus passos: a polícia descobriu que eram arapongas da Abin

As investigações sobre a atuação ilegal dos espiões da Abin já revelaram que o comando das ações clandestinas estava sediado em Brasília, precisamente no gabinete do delegado Lacerda, diretor afastado após a descoberta de que seus comandados haviam grampeado ilegalmente os telefones do presidente do STF. Na semana passada, a CPI dos Grampos ouviu um depoimento em que isso ficou evidente. O agente Márcio Seltz, um dos oitenta espiões que participaram da operação secreta, revelou que teve acesso a mensagens eletrônicas e a interceptações telefônicas oriundas das investigações da PF e que chegou, inclusive, a repassar o material a Lacerda. Portanto, é razoável supor que o delegado e seu superior, o general Felix, conheciam todos os detalhes da operação, inclusive a missão – ou as missões – do tenente Antônio Leandro.

A história do tenente, por essa razão, precisa ser investigada com atenção. Abordado pela reportagem em sua residência, Leandro, tenso, pergunta: "Como foi que você me descobriu?". Trava-se o seguinte diálogo:

Qual era sua missão na Operação Satiagraha?
Eu fui lá render um colega que já estava de campana e acabei sendo pego pela polícia. Eu não sabia exatamente quem estava seguindo. As operações são compartimentadas. A pessoa recebe uma ordem, mas não sabe detalhes. Nesse caso, a ordem era seguir o carro do alvo.

De quem foi a ordem?
Eu recebi instruções do meu superior na superintendência da Abin em São Paulo.

Dida Sampaio/AE
Lula Marques/Folha Imagem
REVELAÇÕES
O agente Márcio Seltz, que participou da operação clandestina, revela à CPI dos Grampos que mensagens eletrônicas e gravações telefônicas oriundas da investigação do delegado Protógenes Queiroz (à direita) foram entregues nas mãos do delegado Paulo Lacerda, diretor afastado da Abin, que negou ter recebido o material

O senhor chegou a ter contato com o delegado Protógenes Queiroz, da Polícia Federal?
Não, eu não sabia que a Polícia Federal estava nessa operação.

Quando foi abordado pela polícia do Rio, o senhor se identificou como tenente Marcos?
Eu não menti. Dei a carteira da Presidência da República e falei que trabalhava para a Abin. Eu não sou louco de mentir, apresentar um documento falso, uma história falsa, e levar um tiro.

O senhor fazia o que antes de atuar na Abin?
Fui do corpo de segurança do presidente Lula. Quando ele viajava para São Paulo, eu fazia a segurança dele. Você acha que vão me chamar para a CPI? Você vai publicar isso aí e vão me dar uma cadeia na Polícia Militar por eu ter participado da operação. Vou perder minha promoção. Se isso acontecer, eu vou te achar em Brasília. Não posso falar mais... Se você publicar, eu vou te achar.

O Gabinete de Segurança Institucional e a Abin se recusaram a comentar o caso.

UM DEGRAU ACIMA

A parte clandestina da operação policial que investigou o ex-banqueiro Daniel Dantas contou com a participação de espiões da Abin e de um ex-segurança do presidente Lula, o tenente Antônio Leandro de Souza Júnior, lotado no Gabinete de Segurança Institucional (GSI)

Selmy Yassuda

O FLAGRANTE
No dia 27 de maio passado, policiais do Rio de Janeiro abordaram um Astra prata na porta da casa do empresário Humberto Braz, investigado pela PF no caso do ex-banqueiro Daniel Dantas. Dentro do carro estava um espião da Abin.

ESPIÕES RUSSOS
O caso chegou ao conhecimento do Palácio do Planalto. O general Jorge Felix, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, informou ao chefe-de-gabinete do presidente Lula, Gilberto Carvalho, que o agente estava no encalço de espiões russos.

CLANDESTINIDADE
Em julho, descobriu-se que a operação da Polícia Federal que prendera Daniel Dantas havia contado com a participação maciça e clandestina de espiões da Abin, que monitoraram e grampearam ilegalmente autoridades, entre elas o presidente do STF, ministro Gilmar Mendes.

Antônio Cruz/ABR

MENTIRAS
Ao Congresso, o general Jorge Felix e o diretor afastado da Abin, Paulo Lacerda, disseram que a participação dos espiões havia sido informal e se limitara à checagem de endereços. Segundo eles, a história dos agentes russos teria sido uma invenção do espião para não colocar em risco a investigação contra Dantas.

DENTRO DO PALÁCIO
Localizado por VEJA, o espião confirmou que estava seguindo os passos de Humberto Braz e que nunca contara história alguma sobre agentes russos. Ex-integrante da equipe de segurança do presidente Lula, ele foi colocado pelo GSI à disposição da Abin e atuou no caso.