segunda-feira, setembro 01, 2008

Obama, o nômade, simboliza EUA

Presidentes 'desenraizados' são mais regra que exceção num país formado por imigrantes e famílias peregrinas

O ESTADO DE S PAULO,

Michael Powell, THE NEW YORK TIMES

É comum dizer que Barack Obama tem algo de enigmático. Obama foi criado na Indonésia e no Havaí, freqüentou escolas nesses dois países e mais tarde aterrissou em Chicago, onde não tinha qualquer elo familiar. Com talento e ambição, ainda jovem resolveu disputar a presidência dos EUA e foi a Denver reivindicar sua indicação como candidato pelo Partido Democrata.

A vida de Obama tem muito dos romances de John Steinbeck, como muitas histórias de imigrantes americanos: a mãe que vivia "batendo as asas", o pai, um homem emblemático e ausente; o avô materno, que se criou na cidade de El Dorado, no Kansas, e procurava levar a família para o Oeste. No entanto, descrevê-lo como um desenraizado, como pretendem algumas pessoas, leva a outra pergunta: afinal de contas, o que significa ausência de raízes?

É freqüente na cultura americana a história do estrangeiro que aos poucos se transforma num "insider" e no final tem o seu esforço recompensado. Por quatro séculos, esperança e desespero empurraram os imigrantes para as nossas costas. Puritanos se espalharam pelas terras nem sempre férteis da Nova Inglaterra. Os ingleses e escoceses chegaram à Filadélfia no século 18, para depois alcançarem as colinas da Pensilvânia e as cadeias dos Apalaches.

Com os negros a história foi mais complicada. Eles tiveram duas tristes fases de migração: a primeira ao chegarem ao Novo Mundo acorrentados e, muitos anos depois, ao partirem nos vagões de trens para as cidades industriais do norte do país.

Em 1893, o historiador Frederick Jackson Turner escreveu em seu livro Frontier Thesis ("Tese da Fronteira") que a chave da vitalidade americana está nesse constante movimento de peregrinação. Mesmo hoje, duas de cada dez famílias costumam mudar de localidade nos EUA dentro de um período que vai de 15 a 24 meses.

"O desenraizamento sempre fez parte da cultura americana" , diz Arnold Rampersad, professor da Universidade Stanford. No entanto, fala-se sempre que os americanos querem uma estrela guia e não um nômade como líder. Durante as primárias, Hillary Clinton, que nasceu em Illinois, passou por Yale, Arkansas, Washington D.C. e hoje vive em Nova York, foi aconselhada pelo estrategista Mark Penn a dar ênfase às suas raízes tradicionais do Meio-Oeste, de modo a contrastar com Barack Obama.

Os exemplos de alguns ex-presidentes provariam a eficiência dessa estratégia. Lyndon B. Johnson usou suas origens texanas para se fortalecer e Jimmy Carter, a sua fazenda de amendoins na Geórgia. Bill Clinton estudou em Oxford, mas procurou construir sua imagem em Arkansas.

A verdade, porém, é que muitos presidentes também são como árvores com raízes pouco profundas, apesar de não serem tachados de nômades. Ronald Reagan cresceu em Tampico, Illinois, transferiu-se para Iowa, seguindo depois para a Califórnia. George W. Bush, apesar do sotaque fanhoso, freqüentou uma escola de sangue azul em Massachusetts e passava as férias no Maine. Dwight Eisenhower nasceu no Texas, mudou-se para o Kansas e chamava a Pensilvânia de seu lar. Teddy Roosevelt foi para as Dakotas, o melhor lugar para criar uma imagem de presidente "cowboy", apesar de ser de Nova York. Abraham Lincoln, o protótipo de um nativo de Illinois, nasceu em Kentucky e cresceu em Indiana.

Mas o andarilho que se aventura pelo mundo também corre riscos. "Chame-me Ismael", em Moby Dick é uma das grandes aberturas da literatura americana. O marinheiro assume o nome do filho pária de Abraão no momento de realizar uma viagem fantástica. "Há alguns anos tendo pouco ou nenhum dinheiro no bolso, pensei em navegar um pouco por aí", diz o narrador, único sobrevivente da aventura.

"Você pode dizer que os americanos estão em conflito consigo mesmos", diz Andrew Delbanco, professor de estudos americanos na Universidade de Columbia. "Há uma tradição antiga de celebrar a pequena cidade como o lugar ideal para uma pessoa crescer e se tornar moralmente estruturada. Mas ao mesmo tempo, há outra tradição de se ver essa pequena cidade como um lugar sufocante."

Talvez a ausência de raízes em um político nacional seja menos preocupante do que se imagina. O senador John McCain, candidato republicano, freqüentou mais de uma dezena de escolas porque seu pai, um almirante, era transferido com freqüência. "Tendo primeiro sido um migrante por causa das exigências impostas pela carreira do meu pai, acabei me tornando um andarilho por vontade própria. Nesse tipo de vida, algumas coisas boas são esquecidas. Mas as coisas ruins também ficam para trás", explicou certa vez McCain.

"O próximo presidente dos EUA será um Ismael, gostemos ou não", conclui Rampersad, de Stanford. "Felizmente, tanto McCain como Obama sabem disso."