A proteção federal é um perigo
HILDEBRANDO Preso em 1999, ex-deputado continua reduzindo a lista das testemunhas ameaçadas
Todo mundo já viu a cena no cinema. Num quarto do hotel, quatro policiais jogam baralho, três espreitam o movimento na rua e dois puxam conversa com o homem com cara de medo encolhido no sofá. Uma pancada na porta precede o aviso: é o carrinho com o café da manhã. Entra o garçom que, logo se saberá, é integrante da quadrilha que precisa impedir que a figura no sofá chegue ao tribunal e conte tudo o que tem a dizer sobre o bandidaço. Além do falso garçom, ninguém sabe que há uma bomba sob o prato de frios, ou que o hambúrguer está envenenado. Depende do roteirista. Não é fácil matar alguém aos cuidados do Programa de Proteção a Testemunhas do governo americano. Nos Estados Unidos, o assassinato de depoentes sob proteção federal virou coisa de cinema justamente por ser raríssimo no mundo real. Fora da tela, ninguém banca o garçom sem mais nem menos. Testemunhas chegam ilesas ao tribunal, ajudam a engaiolar o acusado, sobrevivem ao depoimento e envelhecem em segurança. Com outro nome, noutra cidade, às vezes longe da família. Mas sem riscos e sem sustos. São blindados pelo segredo. É por isso que só morrem no meio de um filme Se o Brasil não é para principiantes, como avisou Tom Jobim, a versão nativa do modelo americano deixaria pálido de espanto o mais tarimbado detetive de Los Angeles. Criado em 1999, o Programa de Proteção a Testemunhas da Secretaria dos Direitos Humanos não passa de uma ficção desprovida de tropas e verbas. Em tese, basta um requerimento à Polícia Federal pa- ra que a escolta de sherloques da pesada se apresente em menos de meia hora. Na prática, falta dinheiro (e faltam poderes) até para o recrutamento de meia dúzia de escoteiros. No orçamento da União, a verba deste ano ficou abaixo de R$ 10 milhões. Pouco mais de R$ 800 mil por mês. Uma piada. Um perigo. No começo de agosto, a direção da miragem informou que a lista de protegidos abrange 336 brasileiros. Seriam 333 se não tivessem sido fuzilados antes do pedido de inscrição o bombeiro, o policial civil e o caseiro que se arriscaram a revelar o que sabiam sobre o inverossímil Hildebrando Paschoal, ex-deputado e ex-coronel da PM do Acre. Ainda em agosto, por ordem do meliante recolhido a uma cadeia de segurança máxima em Rio Branco, a lista baixou para 335 nomes. Hildebrando decidiu que chegara a vez do ex-policial civil Manoel Décio de Lima, que em 2002 descreveu num depoimento em juízo o fatiamento por motosserra de um desafeto do chefão. Dois anos depois, inscrito no programa, Lima transferiu-se sem escolta para Chapadão do Céu, em Goiás. Morreu com 42 anos e oito balas de pistola no corpo e na cabeça a mesma quantidade de chumbo encontrada nos três companheiros de testemunho. Preso há 10 anos, condenado a mais de 70 pela mesma Justiça que limita a 30 a duração de temporadas na cadeia, Hildebrando tem paciência e tempo de sobra. O "crime da motosserra", por exemplo, ocorreu em 1997. Só 11 anos depois foi consumada a vingança. O promotor público e a delegada da cidade ainda não se convenceram de que Hildebrando tem culpa no cartório. Até que apareça uma testemunha disposta a falar sob a proteção do governo, será tratado como inocente o colecionador de horrores que incluem tráfico de drogas, roubo de carga, corrupção eleitoral e incontáveis assassinatos.
A caminho
da perfeição
Se no ano passado, como Lula avisou, o sistema de atendimento à saúde estava "perto da perfeição", pode-se presumir que já chegou lá. O presidente fez em cinco anos o que não foi feito em cinco séculos, certo? Pois alguns meses devem ter bastado para que a coisa ficasse perfeita pelo menos no mundo administrado pelo Palácio do Planalto. Só os candidatos lulistas às eleições municipais ainda não descobriram que a solução de todos os problemas está num ato de doação: é só entregar a Secretaria da Saúde ao controle do governo federal.
Os bandidos são outros, governador
Em abril, desafiado pela procissão de invasões de terras produtivas puxada pelo MST, o governador José Serra tratou os generais das tropas fora-da-lei com a tolerância de mãe de preso. Em vez de mandar a polícia ao cenário do crime, e punir os violadores do direito de propriedade, Serra convidou os órfãos do stalinismo para conversar. Não viu diferenças entre os disparos do "abril vermelho" e um rojão de festa junina. Não enxergou diferenças entre a movimentação da quadrilha disfarçada de gente do campo e o movimento de quadris das quadrilhas das noites de São João. Serra trata bandidos com muita educação, soube o país. Mas é durão quando lida com a polícia, sabe-se agora. Seis meses depois do abril ultrajante, o governador resolveu tratar como bandidos os integrantes da Polícia Civil mais eficaz e mais mal paga do Brasil. Antes da greve decretada há dias, delegados e investigadores buscaram exaustivamente uma solução negociada para a melhora das condições de trabalho e dos salários em frangalhos. Irritado com o movimento grevista, Serra decidiu reduzi-lo a "provocação política". Por trás de reivindicações muito pertinentes, viu a mão da CUT. Os policiais não seriam tratados assim se exibissem sobre a cabeça o bonezinho do MST.
Dilma invade a zona conflagrada
O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social emprestou U$ 200 milhões à Norberto Odebrecht, para financiar a construção da hidrelétrica de San Francisco, encomendada pelo governo do Equador. Terminadas as obras, a a empreiteira receberia a quantia combinada no contrato, devolveria o dinheiro que o banco lhe emprestara e ficaria com o lucro de bom tamanho. Simples assim. Deixou de sê-lo quando se comprovou que a encomenda fora entregue com defeitos de fabricação. Irritado com o mau desempenho da hidrelétrica, o presidente Rafael Correa ordenou o embargo dos bens da Odebrecht no Equador. Era pouco, avisou o presidente na quinta-feira, ao incorporar aos castigos impostos à empreiteira uma pancada no BNDES. "Nós pensamos seriamente em não pagar esse dinheiro que foi dado à empresa, mas aparece como dívida do Equador com o Brasil", resumiu. Tudo claro, certo? Não para a ministra Dilma Rousseff, que mais uma vez invadiu campos desconhecidos com a desenvoltura de palanqueira aprendiz. "O BNDES não emprestou dinheiro ao Equador, e sim à construtora", errou. "Não vamos complicar mais as coisas". A declaração informa que Correa entende muito mais de BNDES que Dilma Rousseff.