sábado, agosto 30, 2008

São Paulo acessível Mauro Chaves

"A deficiência é uma fatalidade que pode acontecer a qualquer um. A diferença não está em ser ou não deficiente, mas em como cada um supera as barreiras que inevitavelmente a vida lhe oferece. É esse movimento que define a grandiosidade da condição humana." Estas palavras vêm da profunda experiência de uma bela jovem - a publicitária, psicóloga e vereadora Mara Gabrilli - que há 14 anos sofreu um acidente de carro que a deixou paralisada do pescoço para baixo.

Na condição de tetraplégica, depois de ter passado cinco meses internada, dois deles em respirador artificial, ela "foi atrás de tudo o que poderia ganhar". Tornou-se, então, uma formidável guerreira, na busca de ganhos para as pessoas com deficiência e mobilidade reduzida, com o que passou a comandar uma verdadeira revolução de acessibilidade na cidade de São Paulo.

São Paulo tem cerca de 1,5 milhão de deficientes físicos. Se computarmos as pessoas com mobilidade reduzida - tais como as grávidas, os idosos, os anões, os acidentados, etc. -, esse número chega a 3 milhões. Com a experiência que lhe foi dada pela própria condição física, além dos estudos e pesquisas que passou a desenvolver, Mara Gabrilli começou a entender o que ocorria com um imenso contingente da população paulistana, que temia sair de casa por não sentir condições de enfrentar terríveis barreiras: físicas, culturais, comunicativas e até morais.

Eram as rampas que faltavam nos prédios públicos e privados, eram as dificuldades para subir nos ônibus, eram as calçadas esburacadas, malcuidadas e irregulares, era a falta de sinalizações e orientações; eram as desinformações dos prestadores de serviços - nos restaurantes, lojas, repartições públicas, etc. - quanto ao tipo de deficiência das pessoas, a ponto de gritarem para cegos e cadeirantes, julgando-os surdos, ou se dirigirem só aos acompanhantes dos deficientes, como se estes nada entendessem. Era, enfim, um sufocante mar de preconceitos, que tanto confundia cadeirantes com pedintes e surdos com assaltantes, quanto produzia um índice recordista de suicídios entre os anões. Mara fundou a ONG Projeto Próximo Passo (PPP), com o objetivo de promover pesquisas para cura de paralisias e projetos de inclusão social para atletas com deficiência. Organizou publicações, como o Manual de Convivência, dando "dicas" fundamentais para a comunicação com pessoas com deficiência.

Primeira titular da Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida (a SMPED, criada na gestão Serra/Kassab), Mara desenvolveu dezenas de projetos nas mais diversas áreas: infra-estrutura urbana, educação, saúde, transporte, cultura, lazer, emprego e outras. Seu trabalho resultou, entre outras coisas, no aumento, de 300 para 3 mil, do número de ônibus acessíveis, com piso baixo (os que "se ajoelham") e bancos largos para obesos; na reforma de 315 quilômetros de calçadas adaptadas; na criação, pela Secretaria da Saúde, de 39 núcleos municipais de reabilitação física e saúde auditiva, conveniados ao SUS, para concessão de órteses e próteses; no emprego de mais de mil trabalhadores com algum tipo de deficiência; nas versões em braile ou áudio de todos os livros das bibliotecas municipais (projeto Ler pra Crer); na ida de 14 mil deficientes ao cinema, teatro e exposições (projeto Arte Inclui).

Mara conheceu o secretário das Subprefeituras, Andrea Matarazzo, no Ministério Público, quando ele começava a analisar as possibilidades de reforma da Avenida Paulista. Havia a idéia de recolocar as pedras de mosaico português, que é o pior material sob o ponto de vista da acessibilidade. Ela protestou e conseguiu que fossem utilizadas as atuais placas de concreto moldado in loco, o que, juntamente com rampas, piso podotátil e semáforos sonoros, se tornou um modelo de acessibilidade para a América Latina.

É certo que os benefícios da acessibilidade se estendem dos deficientes a todos os demais cidadãos. As calçadas de São Paulo sempre foram péssimas para os pedestres em geral - não apenas para os deficientes. Mara fez aprovar este ano uma legislação sobre as calçadas da cidade que, além de aumentar a multa (antes ridícula) para os passeios malcuidados, deu à Prefeitura a obrigação de reformá-los, começando por um programa de 600 quilômetros. A SMPED montou um sistema logístico que cruza dados e determina quais são os percursos que devem ser reformados, prioritariamente, nas 31 Subprefeituras. Tais percursos foram considerados rotas estratégicas, que recebem grande número de pessoas, por reunirem órgãos públicos de atendimento, bancos, escolas, estações, hospitais, enfim, equipamentos públicos e privados essenciais à população, com ou sem deficiência.

Ainda que nossa juventude tenha muitas razões para não nutrir entusiasmo pelas pessoas que estão na vida política, ainda que o descrédito, o engodo, a desfaçatez, a cara-de-pau, o carreirismo desenfreado e a demagogia barata de tantos já tenham contaminado tantos antigos idealistas, com doses descomunais de desilusão, Mara Gabrilli, essa mulher corajosa, aguerrida, de sorriso contagiante, jeito afetuoso, profunda lucidez e, sobretudo, uma serenidade de quem está bem pactuada com a vida, trabalhando mais de dez horas por dia, transmite a todos a certeza de que, apesar de tudo, ainda existe grandeza entre os habitantes da vida pública.

O projeto de transformar São Paulo numa das cidades mais acessíveis do mundo, se está longe de ser concluído, já está plenamente lançado, correndo no rumo certo, pois a população desta cidade já percebe que acessibilidade é o instrumento arquitetônico da dignidade.