domingo, agosto 24, 2008

Mário Vargas Llosa

Ainda há uma esperança para a Venezuela


Fiz uma visita relâmpago a Caracas para ver a montagem teatral de Héctor Manrique de uma obra minha, Al pie del Támesis ("Às margens do Tâmisa"). Apesar de minha breve permanência, pelo que vi, ouvi, li e conversei com amigos nessas poucas hora, saí da Venezuela convencido de que o projeto autoritário que o comandante Chávez chama de "Revolução Bolivariana" e "socialismo do século 21" tem agora menos possibilidade de se concretizar do que há alguns anos. O tempo e a resistência dos venezuelanos vão enfraquecendo, aos poucos, o risco de que a pátria de Bolívar torne-se uma segunda Cuba.

De onde se origina meu otimismo? Da liberdade com que os venezuelanos criticam o governo nas ruas, praças, cafés e onde quer que seja, sem se deixarem intimidar pelas represálias, que vão desde demissões sumárias de cargos públicos, multas, cancelamento de contratos e licenças para empresários, estatizações e confiscos, até o fechamento de rádios, televisões e teatros públicos a artistas, diretores, roteiristas e produtores que relutam em tornar-se instrumentos submissos do poder.

As pesquisas realizadas sobre as eleições do próximo dia 23 de novembro, quando serão escolhidos 22 governadores e 335 prefeitos em todo o país, mostram que a oposição, unida, poderá obter uma porcentagem muito elevada de vitórias em toda a Venezuela.

Chávez sabe disso e tomou precauções. Mandando o Controlador da República, em flagrante violação da Constituição, "inabilitar" quase 300 candidatos, em sua grande maioria da oposição. Entre eles, estavam quatro oposicionistas que tinham grandes chances de vitória e ficaram fora da disputa.

O Supremo Tribunal de Justiça, agora a serviço do regime, validou o legicídio. Mesmo assim, e conscientes de que, alertado pela derrota sofrida no dia 2 de dezembro de 2007, Chávez usará de todos os recursos a seu alcance para impedir um novo revés, os venezuelanos alimentam um certo otimismo.

O regime poderá orquestrar uma fraude generalizada? Não é fácil, porque já existe o voto eletrônico, sempre e quando, é claro, haja uma fiscalização nas mesas de votação, como a que exerceram os estudantes no referendo sobre o projeto de reforma constitucional de dezembro. E é evidente que, desta vez, haverá nova mobilização para impedir, ou pelo menos reduzir, o risco de alteração indevida dos resultados.

Pergunto a meus amigos, enquanto saboreio um café da manhã com arepas e queijo branco, por que o regime chavista não conseguiu instaurar na Venezuela instrumentos de coerção e intimidação - como os comitês de bairro e de distrito da Revolução Cubana, por exemplo -, que em todas as sociedades autoritárias paralisam a sociedade civil e a amordaçam, permitindo que o regime feche todos os espaços de liberdade e crítica ao poder.

Quem me dá uma explicação convincente é Teodoro Petkoff, fundador do MAS (Movimento Para o Socialismo), do qual se retirou no mesmo dia em que o grupo decidiu apoiar Chávez. Petkoff é ex-guerrilheiro, ex-prisioneiro político - com duas fugas fabulosas da prisão -, diretor de jornal e um dos mais lúcidos analistas políticos da Venezuela.

Segundo Petkoff, desde a queda da ditadura de Marcos Pérez Jiménez, em janeiro de 1958, até a ascensão ao poder do comandante Hugo Chávez, em 1999, ou seja, durante cerca de 40 anos, os venezuelanos tiveram governos que, independentemente de seus fracassos no campo econômico e social, garantiram as liberdades públicas, realizaram eleições livres e respeitaram o direito de expressão e de crítica de seus cidadãos.

Essas práticas democráticas calaram profundamente na sociedade venezuelana. Embora a corrupção e as políticas equivocadas tenham causado uma decepção de um vasto setor do povo com os partidos tradicionais e tenham criado um clima favorável à pregação populista, revolucionária e à figura do caudilho, o hábito do exercício da liberdade não desapareceu.

EXEMPLO

Por isso, Chávez não pôde seguir o exemplo cubano, ou mesmo o soviético, o chinês, o islâmico ou o de outros déspotas militares do continente, que emascularam por meio do medo toda uma sociedade, antes de subjugá-la.

Mais ainda, esse espírito independente e livre, aclimatado ao longo de quatro décadas de vida democrática, manifesta-se até mesmo no interior do próprio partido de Hugo Chávez, onde as divisões e as insubordinações contra o caudilho fazem com que, nas próximas eleições de novembro, em alguns Estados (como o seu), os candidatos governistas representem opções críticas e rebeldes em relação à política do próprio presidente.

Quantos cubanos há na Venezuela? Esse é o segredo mais bem guardado do regime chavista. Ninguém sabe ao certo. Os cálculos variam entre 10 mil e 30 mil. Muitos deles são médicos e dentistas e vivem espalhados pelo território nacional, nas "missões" ou postos de saúde que prestam serviço nos "ranchitos", bairros pobres na periferia das grandes cidades, e no campo.

Um número considerável de cubanos estabelecidos na Venezuela trabalha em funções de segurança e inteligência. Aparentemente, eles têm a responsabilidade de zelar pela segurança de Chávez. Muitos utilizaram a Venezuela como trampolim para fugir para os EUA, para a Colômbia e para a América Central, embora não existam estatísticas a respeito.

AUTORITARISMO

Em todo o caso, o certo é que a presença dessa ampla comunidade cubana na Venezuela não parece, de modo algum, constituir uma força de doutrinação e propaganda em favor do marxismo-leninismo e da utopia comunista, mas uma amostra de ceticismo e de saturação da "revolução".

A esse respeito, não resisto à tentação de reproduzir um episódio contado por Petkoff. Ao tomar um táxi no centro de Caracas, ele foi reconhecido pelo motorista, que era um médico cubano. Em suas horas de folga, o taxista trabalhava como chofer para melhorar sua renda. Vivia já há algum tempo na Venezuela e, certamente, estava muito satisfeito.

O que mais o alegrava era a abundância que via em todas as partes, nas lojas, armazéns e mercados, em grande contraste com os modestos e míseros postos de venda de produtos nacionais onde os cubanos mais pobres costumam se abastecem na ilha.

RESISTÊNCIA

No meio da conversa, o médico-taxista confessou a Petkoff esta fraqueza: "Quando cheguei à Venezuela e vi pela primeira vez uma garrafa de Coca-Cola, meus olhos se encheram de lágrimas."

Se, depois de meio século de revolução, o símbolo por excelência do capitalismo desperta semelhantes emoções em um cubano nascido e educado sob a pregação ideológica de Fidel Castro, alguém duvida que o socialismo em sua versão cubana está com os dias contados?

Quando as sociedades vivem períodos traumáticos, geralmente a vida artística e cultural experimenta um apogeu. E a Venezuela não é uma exceção à regra.

As carências e limitações, que podem ser percebidas em outros campos, não empobreceram o trabalho literário, intelectual e artístico, que mantém elevados níveis de criatividade no país.

BOLIVARIANISMO

O governo não quis ou não soube cooptar a classe intelectual e artística e colocá-la a seu serviço. Escritores, professores, músicos, pintores, atores mantiveram uma grande independência em relação ao regime e, com escassas exceções, não aceitaram servir como propagandistas.

Um bom número deles milita hoje na resistência. As universidades também não foram subjugadas pelo regime chavista. Quase todas, tanto públicas quanto privadas, conservaram sua independência e são, em alguns casos, um contrapeso salutar de defesa da cultura e da liberdade contra a demagogia revolucionária governamental.

É notório que o presidente Chávez promove seu "socialismo bolivariano" a golpes de talão de cheques, ou melhor, de barris de petróleo, que presenteia aqui e ali ou vende a preços preferenciais aos países que pretende incorporar à sua órbita de influência.

Desse modo, uma grande porcentagem dos recursos do país vai para o exterior para beneficiar outros povos, em vez do povo venezuelano. Durante minha rápida visita, ouvi muitas críticas e de toda a ordem contra o regime, mas não ouvi uma única vez um venezuelano se queixando desses gastos chavistas em favor dos bolivianos, dos nicaragüenses, dos argentinos e, agora, dos paraguaios. Por quê?

SOLIDARIEDADE

Sem dúvida, porque aquele espírito solidário, sacrificado e generoso que levou tantos milhares de venezuelanos a sair desse pequeno e pobre país que era a Venezuela, para derramar seu sangue pela liberdade da América Latina, no início do século 19, continua incendiando os corações de seus descendentes.