sábado, agosto 02, 2008

Lirinha: o Conselheiro dos modernos

Quem é Lirinha, o cantor pernambucano que, com letras
difíceis, se tornou um profeta para os universitários


Marcelo Marthe

Julia Moraes

CABEÇA DO CORDEL
Lirinha, com sua barba de beato: "espíritos com ele no palco"

José Paes de Lira, ou Lirinha, é o Antônio Conselheiro dos modernos. Assim como o beato da Guerra de Canudos (1896-1897) arregimentou uma horda de jagunços e despossuídos profetizando que um dia jorrariam leite e mel no sertão nordestino, o cantor e compositor pernambucano seduz a garotada universitária e antenados em geral com promessas de transcendência. Nos shows de sua banda, o Cordel do Fogo Encantado, fãs (sóbrios?) o abordam com as conversas mais malucas. "Já teve gente que jurou ter visto energia emanar de meu corpo. Ou, ainda, espíritos dançando comigo no palco", diz ele. Surgido há nove anos na cidade de Arcoverde, no semi-árido de Pernambuco, o Cordel mescla ritmos nordestinos como o maracatu com guitarras. Mas o que mais chama atenção é a teatralidade de seu vocalista: com os olhos revirados, como em transe, ele declama letras que define como "proféticas" e "apocalípticas". Somadas, as vendas dos três álbuns do Cordel totalizam 80 000 unidades, algo notável para uma banda independente que não toca nas rádios. Graças ao boca-a-boca e à internet, tornou-se popular nos circuitos universitários do Sul e do Sudeste. As novas empreitadas do rapaz reforçam a aura de iluminado. Lirinha cultivou uma barba como a de Conselheiro para protagonizar sua primeira peça, Mercadorias e Futuro (que escreveu e co-dirige ao lado da mulher, a atriz Leandra Leal). No monólogo dramático, ele é um vendedor que faz propaganda de um livro sobre (surpresa!) profecias. Mas a viagem declarada do autor (surpresa de novo!) é questionar as relações entre arte e comércio. Agora, ao mesmo tempo que a peça entra em cartaz em São Paulo, Lirinha estréia na literatura – com o tal livro de que fala o espetáculo.

Divulgação
SERTÃO NA TV A série Hoje É Dia de Maria: o arcaico e o moderno

Lirinha é discípulo de uma vertente que há tempos está presente na cultura nacional: aquela que faz a celebração de um "sertão mítico", por meio de uma estética que "mistura o moderno e o arcaico". Reza por essa cartilha a literatura do paraibano Ariano Suassuna, com seu estilo rebuscado e suas referências ao universo armorial. A tendência está na TV, nas produções dos diretores Guel Arraes e Luiz Fernando Carvalho. O primeiro comandou a série O Auto da Compadecida, baseada no livro de Suassuna. Carvalho esteve por trás de Hoje É Dia de Maria e A Pedra do Reino (também adaptada da obra do escritor). Passa, ainda, pelo cinema de um Glauber Rocha nos anos 60, em filmes como Deus e o Diabo na Terra do Sol. Lirinha bebe também de outra influência: o teatro do diretor José Celso Martinez Corrêa, aquele que transformou a Guerra de Canudos em pretexto para saturnálias em suas montagens baseadas em Os Sertões, de Euclides da Cunha. A ligação do cantor com ele é direta. Lirinha fez a trilha sonora de uma das partes de Os Sertões e, no ano passado, interpretou o secretário do profeta vivido pelo dramaturgo no longa-metragem Árido Movie, filmado em sua Arcoverde natal.

AE
CINEMA VELHO Glauber Rocha: Nordeste "mítico" e vanguardices


Nas letras do Cordel, Lirinha é messiânico. "Os soldados de Sebastião mostrarão o caminho", brada. Nos shows, recita poemas extralongos entre uma música e outra. A nova empreitada literária e teatral representa um passo além em matéria de pretensão. Com 31 anos, ele cria uma peça calcada no próprio passado. O protagonista se chama Lirovsky. "Ele é um pedaço de mim", afirma. A ação se passa num local chamado Interlândia. "É meu eu interior", explica. Falar em "ação", a bem da verdade, é fora de lugar. Não há enredo propriamente – apenas falas fragmentárias costuradas por sons e luzes que ele mesmo dispara, por meio de um sistema intricado de pedais e alavancas. Quanto ao livro Mercadorias e Futuro (Ateliê Editorial; 95 páginas; 25 reais), vejamos uma frase: "Cada câmbio age sobre a própria forma espaço-tempo se expandindo e se contraindo através de um cosmo finito mas sem limites". Entendeu, Ariano? Entendeu, José Celso?

Tuca Vieira/Folha Imagem
SATURNÁLIAS O dramaturgo Zé Celso: o profeta que conduziu Lirinha


A família de Lirinha é de classe média. A mãe é professora e o pai, fiscal da Receita Estadual de Pernambuco. Ele estudou em colégios católicos particulares e chegou a cursar a faculdade de letras de Arcoverde. Largou o curso para virar cantor. Aos 12 anos, declamou pela primeira vez em rodas de violeiros. Aos 16, estreou como ator numa peça infantil, O Gato que Virou Gente. "Eu era o gato", lembra. O Cordel do Fogo Encantado foi, na origem, um espetáculo de poesia e música. A descoberta por um empresário ligado ao movimento pop recifense do mangue beat, em 1999, mudou os rumos do grupo. Lirinha tinha acabado de cair nas graças do público universitário quando conheceu Leandra Leal. Os dois estão juntos desde 2002 – e ela tem funcionado como guia em sua carreira. Ajudou-o, por exemplo, a dar alguma coerência aos textos soltos de sua peça. "Eram perguntas básicas que eu lançava a ele: quem é esse personagem? O que você está querendo mesmo dizer?", explica a atriz. Continue, Leandra. Ainda falta um tanto.