domingo, agosto 31, 2008

Daniel Piza

Planetário

Daniel Piza, E-mail: daniel.piza@grupoestado.com.br Site: www.danielpiza.com.br


Sempre estranho em boa parte das discussões entre economistas a ausência de uma perspectiva cultural e histórica. Em alguns clássicos isso é muito forte, como em Adam Smith, que na verdade fez em A Riqueza das Nações uma comparação entre a colonização da América do Norte e a da América do Sul, mostrando que naquela a mentalidade gerou uma economia de mercado e não apenas uma exploração de bens e tributos. Mesmo Marx, apesar de suas teses sobre a "queda geral da taxa de lucros", a cartelização auto-implosiva a que o capitalismo estaria condenado, gastou muito mais páginas de O Capital tentando entender a sociedade industrial de seu tempo, na qual a burguesia era composta pelos proprietários dos meios de produção, não pela classe média com que o termo foi identificado no século 20. Mas, principalmente depois dessa cisão entre defensores do capitalismo e do socialismo, a economia passou a ser assunto teórico demais, como se a disciplina se confundisse com uma ciência exata e em parte desligada dos contextos sociais e comportamentais.

Hoje, derrubado o muro de Berlim e terminada a Guerra Fria, o debate deixou de ser entre capitalistas e socialistas, mas ainda são poucos os que vêem o sistema econômico mais permeável aos valores imateriais. No início do século 21, ainda continuamos sob o tom de um debate que opõe como seus maiores representantes as idéias de Keynes e as de Hayek. Para os social-democratas, Keynes justifica sua defesa do Estado do Bem-Estar Social, do governo como condutor da economia e acima de tudo como protetor daqueles que são postos de canto pelo mercado competitivo. Para os liberais ou neoliberais, Hayek é o pregador do livre mercado, da sociedade aberta capaz de se auto-regular pela simples conversão do cidadão em consumidor. Quando lemos esses autores, no entanto, vemos que não é bem assim. Keynes participou da formação de diversas instituições que os estatistas detestam, como o FMI, e sempre foi o primeiro a lembrar que sua tese de que o Estado pode ter um papel anti-recessivo foi pensada para o contexto da depressão pós-1929. Hayek também não era um conservador como os privatistas, que acham que o mundo se divide em perdedores e vencedores, numa espécie de "lei natural" da economia humana, e que dizem que o Estado deve, no máximo, ser um guarda de trânsito, um gerente de crises.

A redução desse debate a um confronto quase diametral de "modelos" causa prejuízos até hoje. É verdade que alguns autores tentaram pensar numa "terceira via", que não é - como parecem pensar alguns autores brasileiros - um meio-termo entre socialismo e capitalismo, mas entre social-democracia e livre mercado. Países europeus, sobretudo, se viram obrigados nos anos 90 a diminuir a carga estatal para que suas economias reagissem à "nova economia" com seu surpreendente dinamismo tecnológico e financeiro, à internacionalização e seus custos e oportunidades. Essa tarefa, mesmo depois do euro, está longe de ter sido cumprida satisfatoriamente. Mercados emergentes no sudeste asiático e, agora, China e Índia crescem em ritmo muito maior, lançando ao mundo tanto o temor como a atração de um potencial de bilhões de novos consumidores. Por outro lado, mesmo nesses países é clara a importância do agente estatal como indutor e coordenador da economia; o tal "Estado mínimo" é igualmente utópico, já que não existe na prática em lugar nenhum do planeta. Para relembrar termos do debate da década passada, o fim da História não veio, mas, apesar de cenas como a dos atentados de 2001, as civilizações não estão apenas em choque.

Essa complexidade da globalização, essa irredutibilidade da economia a modelos matemáticos e fórmulas universais (como o tal consenso de Washington), pode ser vista muito bem no caso da China. Preocupada em não se dissolver territorialmente como a ex-União Soviética e em competir com os "tigres" em ascensão como Tailândia, Coréia do Sul e os demais, o dragão de Pequim acelerou o processo iniciado por Deng Xiaoping há exatamente 30 anos e agora chegou a um crescimento tão robusto quanto peculiar. Imediatamente as opiniões se dividiram: para uns, seria um triunfo do dirigismo, da economia planificada, determinada de cima para baixo por um bando de visionários; para outros, seria uma adesão incondicional ao capitalismo, à economia de consumo, inclusive com desdobramentos democráticos supostamente inexoráveis. Os primeiros, porém, alertam para o risco da ampliação da desigualdade social, como se fosse possível toda a população enriquecer proporcionalmente ao mesmo tempo; e os segundos acham que o controle estatal tem seus dias contados, devido aos custos inerentes à ilusão de que se pode prever tudo. Ao final, tem-se a velha dicotomia entre desenvolvimentistas e monetaristas, para citar o repertório latino-americano desse debate.

Talvez os instrumentos já não se apliquem ao paciente. Quem vê na China a virtude dirigista não pode ignorar que mais de 60% do crescimento do PIB atual vêm das atividades privadas, que o país tem impostos baixos e que cada dia aumenta mais sua abertura comercial. Quem vê nela apenas os efeitos da liberalização desdenha do trabalho feito em lugares que vi como o Business District em Pequim e o "Vale do Silício" em Chengdu, onde o governo é extremamente atuante, em especial na infra-estrutura; e esquece que bancos, exploração do subsolo, meios de comunicação e outros serviços são estatais. Mas também me parece um equívoco equivalente pensar que isso significa que o modelo híbrido chinês - essa "economia dirigida de mercado", como já li - possa ou deva ser copiado. E aqui entra a importância do dado cultural, perspectivista. Numa sociedade confuciana, que aceita em tese as medidas como o partido único e o filho único, além do controle de migração, pois teme a anarquia de um ex-império de 1,3 bilhão de habitantes, essa dosagem de público e privado funciona - ou está funcionando -, mas em outros obviamente não funcionaria. Cada cultura tem de achar essa dosagem e revê-la constantemente.

Afinal, a própria "fórmula" chinesa tem sua acidez. Não há garantia de que as novas gerações - mais consumistas, americanizadas e críticas do que a de seus pais e avós - não queiram um dia que as mudanças políticas sigam as econômicas. Jovens em Pequim admiram os de Tóquio, Seul, Hong Kong e Taipei, em relação aos quais se sentem defasados em termos de modernidade e liberdade. Os problemas sociais também são grandes, como a carência de aposentadoria e seguro-saúde, e a indústria ainda vive sua fase de maquiagem, com muita pirataria e poluição. A compra de parte da IBM pela Lenovo e o investimento em centros de pesquisa são exemplos de que a China sabe que ainda tem muito a andar no mundo competitivo; que não pode viver apenas do "diferencial" do tamanho da população. Mas nesse aspecto é que pode servir não de modelo, e sim de inspiração para outros países em desenvolvimento: a China já sabe que educação e tecnologia são as transformações mais preciosas. Até que ponto saberá monitorar as aberturas comerciais e culturais, claro, é questão em aberto. Mas que seu progresso tem muito a ensinar para o ansioso e dicotômico Ocidente, a começar por seus economistas, não resta dúvida.

RODAPÉ

Outro livro que vale a pena editar no Brasil é China Shakes the World, de James Kynge, jornalista inglês que viveu 19 anos no país como correspondente do Financial Times. Ele mostra como a hierarquia rígida é um traço antigo da cultura chinesa, impregnado em seu modo de produzir e negociar, mesmo nesta fase de abertura à globalização. Forjado em mão-de-obra barata, o crescimento atual da China também se deu sobre bases duvidosas. Mao promoveu a explosão demográfica (580 milhões em 1953, hoje mais que o dobro) e o empobrecimento amplo, além da lavagem cerebral. Mas a capacidade de trabalho dos chineses e a recente política de entendimento pacífico com os estrangeiros, as quais se tentaram expor na Olimpíada, estão mesmo chacoalhando o mundo.

POR QUE NÃO ME UFANO

Vejo diversos programas na CNN com perfis de Obama e McCain e o início das convenções americanas. "It?s showtime!", grita o locutor. As propostas de um e de outro continuam vagas, e a campanha não vai além da troca de acusações pessoais, como a de que Obama não parece americano e McCain tem nove mansões... Soa familiar, não? Mas a diferença de uma democracia madura é que, embora o sujeito no poder exerça grande papel simbólico, a sociedade não depende tanto de suas decisões para continuar funcionando. Já em outras latitudes, os pacotes e as omissões do grupinho que comanda a política afetam todos os cidadãos imediatamente.


Aforismos sem juízo
A alegria alheia alegra. A felicidade, com seu indissociável componente de auto-satisfação, é que mata de inveja