sábado, julho 26, 2008

Ilha de Cuba, para onde vai? Sergio Fausto


Em 26 de julho de 1953 ocorreu o ataque ao quartel de La Moncada, em Santiago de Cuba, episódio que, na narrativa revolucionária, marca o início do processo que levou ao triunfo de Fidel e seus liderados em janeiro de 1959. Passados 55 anos, Cuba encontra-se em reforma do modelo de organização econômica e social cujos traços fundamentais se definiram já no começo da década de 1960. Naqueles anos, a revolução vitoriosa enveredou definitivamente pelo caminho ou descaminho do socialismo, com a estatização praticamente completa da propriedade e dos meios de produção e o estabelecimento de um sistema de planejamento e controle da economia totalmente centralizado.

Dois conjuntos de perguntas resumem as muitas dúvidas sobre a evolução futura das reformas em andamento em Cuba. O primeiro diz respeito à amplitude e velocidade que poderão assumir as reformas econômicas e se elas desembocarão, mais cedo ou mais tarde, na transição para uma economia de mercado na ilha. O segundo se refere a se e quando serão adotadas reformas políticas e, nessa eventualidade, se haverá uma transição para a democracia em Cuba.

Em meio a tantas incertezas, uma coisa parece certa: as reformas iniciadas - parciais, sem dúvida, mas todas elas apontando inequivocamente na direção de mais liberdade econômica de mercado e menos centralização estatal - não deverão ter o mesmo destino das que, deflagradas em 1991, foram interrompidas ou revertidas cinco anos depois. A razão é que a "nova" liderança cubana, ao que tudo indica, está convencida de que ou muda a organização da economia e da sociedade ou perderá o controle político da ilha em não muito tempo.

Trata-se de um reconhecimento tácito de que o socialismo em Cuba é insustentável sem a ajuda externa que lhe proporcionava o mundo soviético, até o final dos anos 80. De fato, boa parte dos indicadores econômicos e sociais cubanos não se recuperou das perdas sofridas após o colapso da União Soviética, a despeito dos últimos três anos de alto crescimento, puxado pela elevação das cotações internacionais do açúcar e do níquel e facilitado pelas importações especiais de petróleo venezuelano.

A velha doutrina socialista tem apelo cada vez menor entre os mais jovens, que não viveram o período revolucionário e não vêem as suas expectativas atendidas por uma economia débil e um sistema público de serviços sociais em decadência. O próprio governo passou a reconhecer os problemas: cerca de 50% dos professores do ensino fundamental são profissionais improvisados, sem as necessárias qualificações, para substituir os professores que deixaram a carreira, alguns o próprio país, em busca de melhor remuneração. O saldo das reformas truncadas da primeira metade dos anos 90 é relativamente negativo: se, por um lado, desafogou a vida de alguns e melhorou as condições de oferta de alguns bens, por outro, criou novas desigualdades na sociedade e na economia cubanas e ampliou a informalidade, por onde penetram o crime e a delinqüência.

Além das dificuldades de uma marcha à ré, o momento é oportuno para avançar com as reformas econômicas. Existe abundância de capitais no mundo, em que pese a crise recente. Há interesses palpáveis de grupos europeus, sobretudo espanhóis, de investir na ilha, principalmente no setor de turismo. As perspectivas de desenvolvimento do etanol abrem novos horizontes para a estagnada lavoura açucareira e as possibilidades de exploração de novas reservas de petróleo no Golfo do México, em parceria com empresas estrangeiras, parecem promissoras. A eventual eleição de Barack Obama nos EUA poderá representar um alento adicional, com a suspensão prometida das restrições a viagens e remessas de dinheiro de cidadãos americanos e cubano-americanos para Cuba.

A estratégia do governo da ilha é clara: melhorar a situação econômica com reformas graduais visando, principalmente, a atração de investimentos diretos estrangeiros, sem abrir mão do poder político. Isso não elimina a possibilidade de relaxamento das restrições às liberdades civis e políticas hoje existentes, inclusive com a libertação de prisioneiros políticos, na medida em que facilitem concessões econômicas externas, mas não coloca de imediato sobre a mesa a carta da transição democrática e da alternância no poder.

No curto e médio prazos, a estratégia do governo conta com boas chances de sucesso. A prazo mais longo, as pressões por uma real democratização devem prevalecer. O relaxamento do regime político reduzirá o medo. A eventual melhoria da situação econômica diminuirá a energia gasta com a obtenção mesmo das coisas mais comezinhas. A ampliação do número de "produtores autônomos" reforçará os interesses em favor de uma economia de mercado com regras claras. A intensificação dos contatos com o exterior, sem a necessidade de abandonar o país, fortalecerá as expectativas de que "um outro mundo é possível".

Como toda transição, os setores mais duros do regime vão resistir. Eles se concentram nos aparatos de segurança e nas empresas estatais, hoje não raro chefiadas por militares. A violência do processo dependerá, em parte, da atitude da "comunidade internacional", a começar pelos EUA.

O Brasil tem um papel a desempenhar nesse processo. Faz bem quando a Petrobrás se apresenta para investimentos em parceria. Faz mal quando se cala diante das violações do regime cubano aos direitos humanos. Pior ainda, quando colabora com elas, como no caso recente dos boxeadores.

Pela significação política que tem, o assunto é maior que o tamanho da ilha. E o Brasil precisa ter uma política à altura, que não sacrifique, como a atual, a defesa internacional dos direitos humanos, princípio da nossa Constituição, em nome de mal disfarçadas simpatias ideológicas e puro e simples pragmatismo econômico.

Sergio Fausto, cientista político, é coordenador de estudos e debates do Instituto Fernando Henrique Cardoso e membro do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional (Gacint/USP)