domingo, junho 29, 2008

JANIO DE FREITAS Do morro ao quartel


A "volta" é uma das chaves para a correta narrativa do episódio da morte dos três rapazes da Providência

AS DUAS SÉRIES de contradições, em depoimentos diferentes, do tenente responsável pelo caso no morro da Providência forçam a polícia e o Exército a pôr em suspenso a versão, aceita por ambos, para o episódio. Antes de tudo, porque as variadas narrativas para os mesmos pormenores sujeitam o restante, na conveniente versão inicial, a igual descrédito. Além disso, porque as contradições do tenente Vinicius Ghidetti proporcionaram, à sua revelia, indícios mais verossímeis.
O mais importante deles: apareceu a primeira referência a um tiro e a seu autor no grupo de militares. Ao alegar na nova versão o ataque de um grupo de moradores aos 11 militares, o tenente disse haver dispersado os agressores com um tiro para o alto. Até então, em sua narrativa não houvera agressões, nem moradores tentaram defender um revistado por suspeita de posse de droga ou arma. Apenas ocorrera desacato dos três rapazes, que voltavam de uma festa, e por isso a sua prisão e entrega a bandidos para "um castigo".
A primeira referência a tiro tem implicação maior que a de incômoda contradição. As armas dos 11 militares não foram recolhidas à parte em sua volta ao quartel, prática que deveria ser norma há muito tempo no Brasil de tantos tiroteios fatais e vítimas inocentes. Também não foi dada notícia de exame dos projéteis alojados nos corpos, indicadores do tipo de armamento e de outros dados sugestivos. Ou seja, a partir da conduta no quartel, tudo se desenvolveu erradamente, para a apuração dos limites de responsabilidade, e corretamente para a conveniência dos implicados e para a praxe militar de encobrir e salvaguardar os maus atos em seu meio.
Apesar disso, as contradições do tenente Ghidetti e o seu confessado tiro não eliminam a imediata lembrança que fazem de dois fatos deixados à margem. Um, é a distribuição de tiros: 26 em um dos rapazes, 19 em outro e apenas um no terceiro. Faz pensar, ao menos, na hipótese de uma ordem: morto o primeiro com um tiro, seja lá pelo que for, seguiu-se a criação de uma carnificina para mudar o enredo. O outro fato que a menção a tiro faz lembrar é a cena, narrada por uma das mães, de seu filho "caído ensanguentado" no quartel para onde o tenente Ghidetti levou os seus presos.
Não é menos curiosa, como desdobramento, a consulta do tenente (ainda no morro) a um capitão (no quartel), sobre o destino a ser dado aos rapazes e, em seguida, a desobediência à ordem de deixá-los no morro. Presos de um grupo que atacara os militares não sugerem consulta prévia para serem levados à prisão, até pela obviedade do que deve ocorrer a quem ataca sem motivo uma patrulha. E por que a preferência do tenente por desobedecer a ordem e levar os três para o quartel onde um deles, segundo sua mãe, foi visto "ensanguentado"?
Ou a disciplina está fraquejando no Exército, ou há mais a ser apurado nos contatos entre o capitão Leandro Ferrari e o tenente Ghidetti. Depois da desobediência que levou os rapazes para o quartel, o tenente, dizem os depoimentos, já estava instalado no caminhão quando recebeu nova ordem do capitão, para não "dar uma volta", como queria, com os presos. Mas, ao voltar, não recebeu represália alguma pelas seguidas desobediências, sendo afastado só depois de conhecido o assassinato dos seus presos.
A polícia já deduziu, ao menos, que o capitão Ferreira está sujeito a indiciamento, pela estranha atitude de não impedir a saída do tenente, depois da alegada proibição, para a tal "volta com os presos". A "volta" que é uma das chaves para a correta narrativa do episódio.
Noticia-se que a promotora Hevelize Covas, da Justiça Militar, não pretende reconstituição no morro da Providência, por considerar que a saída do Exército tornou a área perigosa. Mas quer fazê-la no morro da Mineira, onde os três rapazes teriam sido entregues a bandidos. Nesse caso, o perigo de um morro é ameaçador, e o perigo maior do outro não é. Reconstituição na Mineira? Se de verdade, é impossível. Os inquéritos não sabem nem onde foram os assassinatos, quanto mais como foram, para serem reconstituídos.
O perigo agora é outro. É a fácil solução de pegar uns dois ou três para bodes expiatórios -de preferência mortos, para que não revelem mais tarde os horrores até que se dissessem assassinos dos três rapazes.