domingo, junho 22, 2008

FERREIRA GULLAR De volta a Moscou



Se a permanência das coisas me surpreende, a mudança delas me surpreende muito mais

NUMA MANHÃ de 1973, em maio, deixei Moscou rumo a Santiago do Chile, com paradas em Roma e Buenos Aires. Na véspera, à noite, sob a neve, chorando, despedi-me de Helena para sempre. "Já começo a te esperar", gritou-me ela da janela, antes de descer para alcançar-me. Abraçou-me e beijou-me sem nada dizer e voltou soluçando para casa. Dentro daquele avião, eu estava morto, indiferente ao que fosse acontecer comigo. Essas lembranças me passavam pela mente, durante o vôo que 28 anos depois eu fazia, de volta à cidade.
Havia mais de dez anos já não existia a União Soviética e eu não fazia idéia de que Moscou iria encontrar, depois de tudo o que acontecera com ela e comigo. Tomei o avião da Aeroflot em Madri, em companhia de Roberto Viana, que pretendia filmar-me nos lugares onde com mais freqüência estive durante o tempo que vivi na cidade. Ao nos aproximarmos do destino, como costuma ocorrer nas viagens aéreas, começou a passar um filme, mas sobre a revolução de 1917, um documentário em que aparecia Lênin discursando para a multidão rebelada. Mal acreditei no que via: afinal de contas, o socialismo soviético não se extinguira para dar lugar ao capitalismo? Essa foi a primeira das minhas surpresas naquela viagem de volta ao passado.
Minutos depois, estava eu de novo no aeroporto Sheremetyevo. A permanência das coisas sempre me surpreende. Todos esses anos e o aeroporto permanecia lá! Mas a minha perplexidade foi quebrada pela realidade burocrática: não queriam deixar que entrássemos com o equipamento de filmagem. Roberto explicava-se em inglês, alegando que a embaixada russa no Brasil dera a autorização. De nada adiantou e uma hora depois deixávamos o aeroporto sem o equipamento. Tomamos um táxi que nos levou para um hotel próximo ao centro da cidade. No alto dos prédios e nas paredes, os anúncios de Coca-Cola e McDonald's, onde outrora havia retratos de Lênin.
Na manhã seguinte, a temperatura caiu e começou a nevar. Roberto alugara um equipamento de filmagem de uma empresa, juntamente com um câmera russo. Tinham que me filmar na antiga Escola do Partido, onde eu havia estudado e que era clandestina até para os soviéticos. Ali bacharelei-me em subversão.
Lembrava-me que a escola ficava entre duas estações de metrô: Sokol e Aeroport, mas essa indicação se tornou desnecessária porque o câmera sabia onde ela ficava e que era agora um instituto de estudos econômicos com o nome de Gorbatchov.
Ao descermos do táxi, logo reconheci a entrada do prédio, com alguns degraus de pedra e duas grossas colunas de um lado e do outro da porta. Mas era proibido entrar lá. Num guichê, à entrada, um policial fardado pedia o documento de quem pretendesse entrar. De nada adiantou insistir. Enquanto o câmera falava com o guarda, eu espiava pelo vidro, tentando rever o hall do edifício onde deixávamos nossos capotes e "chapcas". Estava irreconhecível. Deu para ver que o pátio interno fora ocupado por uma edificação. Se a permanência das coisas me surpreende, a mudança delas me surpreende muito mais. A filmagem foi feita na escadaria, eu fingindo que entrava no prédio.
De lá, rumamos para a praça Vermelha, onde fica o mausoléu de Lênin, que nunca me interessei por ver. A neve parara de cair, um sol tímido se abria sobre o Kremlin e as torres coloridas da catedral kitsch de São Basílio. Ao chegarmos, a primeira coisa que me chamou a atenção foi a estátua eqüestre do general Jukov, ainda no mesmo lugar.
À direita da estátua, um grupo de idosos exibia cartazes onde se lia, em russo, "viva o comunismo". Roberto teve a idéia de me filmar junto com eles, o que os alegrou bastante. Um velhinho me perguntou:
-Otkuda vi, tavarich?
-Brasília - respondi.
-Brasília?! Pelé! Carnival!
Em seguida, afastei-me e fui rever a praça dita Vermelha. (A palavra vermelho em russo é quase a mesma que belo). E veio-me à lembrança a primeira visita que fiz a ela, quando me perguntei: "Que faz aqui, na praça Vermelha, tão longe de casa, o filho de dona Zizi?". Não sabia se era sonho ou realidade.
Minha perplexidade agora era outra. Caminhei até a borda da praça onde camelôs vendiam bugigangas. Eram na verdade miniaturas de Stálin e Lênin. Entendi tudo: o cadáver de Lênin não continuava lá como atração turística? E no avião, não passara, como atração turística, a revolução de 1917? Minha surpresa não tinha cabimento: o socialismo, com erros e conquistas, tornara-se parte da história da Rússia, que pretendera extinguir. Simples, assim.