sábado, junho 28, 2008

De estrela brasileira a buraco negro Josef Barat*

"Como podem restos mortais de estrelas criar rupturas no aspecto mais fundamental da realidade: a continuidade do espaço e tempo?" Marcelo Gleiser.

O caso VarigLog reavivou quatro importantes questões: 1) haverá sucessão dos passivos da antiga Varig?; 2) eventual fraude na composição societária resultará na anulação da concessão e, em conseqüência, da aquisição da Unidade Produtiva da Varig?; 3) quais os limites de ingerência do Executivo e do Judiciário nas agências reguladoras?; e 4) Slots (posições temporais em aeroportos) e Hotrans (horários de transporte) outorgados à Varig poderiam integrar-se ao seu ativo para serem arrematados em leilão judicial?

Em se tratando de interpretação da Lei de Recuperação Judicial, caberá ao Judiciário esclarecer a primeira questão e a resposta não refletirá diretamente nos usuários. Quanto à segunda, sendo constatada fraude com o intuito de burlar o Código Brasileiro de Aeronáutica, os resultados das providências que caberão à Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e ao Judiciário (declaração da nulidade da transferência do controle societário da Variglog ou cassação da concessão), embora graves, se restringirão aos agentes diretamente envolvidos na contenda. Quanto à terceira questão, há pelo menos dez anos escrevo sobre o tema, com opiniões já bastante conhecidas. Posso resumi-las no seguinte enunciado: "Agências reguladoras são organizações de Estado e não de governo."

A quarta questão, talvez a mais importante, aparentemente é a que menos tem despertado o interesse da sociedade, da imprensa e do Legislativo, valendo, portanto, destacá-la. Não existe legislação que contemple a aquisição de Slots e Hotrans em mercado secundário. Assim, sem base legal para que componham seu ativo, uma empresa aérea não pode transferi-los a outra. O fato de a legislação garantir a Recuperação Judicial de empresas aéreas não implica conversão dos Slots e Hotrans em bens negociáveis. No caso da Varig, o Juízo da Recuperação Judicial decidiu que integrariam o seu ativo e, portanto, passariam a compor o Ativo da Unidade Produtiva negociável (Nova Varig). A Anac viu-se, assim, impedida de redistribuir os Slots e Hotrans que já não vinham sendo mais utilizados pela Varig.

As conseqüências são conhecidas: aglomerações nos aeroportos, atrasos de vôo, passageiros em terra, enfim, inúmeras restrições à mobilidade e aos direitos dos consumidores. As justificativas para o "congelamento" dos Slots e Hotrans, em benefício da Varig, se fundamentaram na manutenção de empregos e direitos dos funcionários, bem como na premência de uma terceira empresa para evitar o duopólio. Com a quebra, haveria a certeza de que o passivo não seria saldado. Mas, com a demanda crescendo acima dos 15% ao ano, ainda que a Varig tivesse encerrado as atividades, seus empregados, altamente capacitados, seriam absorvidos pelo mercado.

Em resumo - sem rodeios e sem floreios -, após o "congelamento" (um dos fatores que contribuíram para o caos aéreo) e decorrido mais de um ano, empregos não foram repostos, o Fundo de Pensão esvaeceu, o duopólio consolidou-se com mais vigor e apenas 1% do passivo foi saldado. A crise da Varig, acima de tudo, remete à seguinte questão: no confronto entre o interesse de recuperação de uma empresa privada e o interesse do usuário do serviço público, qual deve prevalecer? Imagine-se, para ilustrar, uma empresa de transporte coletivo que, em processo de recuperação judicial e ante dificuldades financeiras, pare de operar suas linhas. Se estas forem "congeladas" para ser objeto de alienação judicial, os passageiros deverão fazer seus trajetos a pé, enquanto aguardam o desfecho do processo?

A equiparação dos Slots e Hotrans a bens do ativo apenas é possível por meio de alteração da legislação. Hoje se permite obtê-los exclusivamente por meio do mercado primário - ou seja, como outorga de serviço público -, o que pode facilitar a entrada de novas empresas. O mercado secundário - não praticado no Brasil - se auto-regula, mas pode dificultar a competição e a entrada de empresas menores, com risco de competição predatória. Como ambos têm vantagens e desvantagens, uma terceira opção - de modelo misto, com leilões periódicos e revisão das proporcionalidades -, se implantada com as devidas cautelas, poderia ser a solução. O assunto é delicado e merecedor de profunda análise e discussão por todos os agentes envolvidos.

*Josef Barat, consultor, ex-diretor da Anac, é presidente do Conselho de Desenvolvimento das Cidades da Federação do Comércio do Estado de São Paulo