domingo, junho 29, 2008

Daniel Piza

Sertão dentro da gente

Se eu fosse inclinado a dividir a humanidade em duas, colocaria no lado de lá as pessoas que dizem que João Guimarães Rosa é chato ou ilegível. Mas a humanidade já é dividida demais e Rosa seria o primeiro a nos lembrar disso. O que simplesmente quero dizer é que há tantos prazeres em ler Rosa que é difícil me conformar que mais pessoas não partilhem deles. Se seu centenário de nascimento, comemorado anteontem, é pretexto para que mais gente o descubra, então viva o pretexto - pois o texto é vivo a cada linha:

"Digo, porque até hoje tenho isso tudo do momento riscado em mim, como a mente vigia atrás dos olhos. Por que, meu senhor? Lhe ensino: porque eu tinha negado, renegado Diadorim, e por isso mesmo logo depois era de Diadorim que eu mais gostava. A espécie do que senti. O sol entrado." Tantos poetas e prosadores cantaram o amor, como Dante e Shakespeare, e Rosa ainda foi capaz de cantá-lo de modo original. "O sol entrado." Mas, como numa tragédia grega, com a luz vem a treva: Diadorim e Riobaldo estão condenados a não se amar.

Há outra passagem, no extremo oposto da cartela de sentimentos, em que Riobaldo vai ao encontro do que pensa ser o Diabo com quem vai pactuar, na noite estrelada do sertão. Chama por Lúcifer, remordendo o ar, bramindo, "desengulindo", e tem o silêncio como resposta. E diz: "O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais." Ele insiste, pois "em mim tudo era cordas e cobras", acredita ouvir Satanás ("O Diabo não existe, por isso ele é tão forte") e, sob o orvalho da madrugada, tremendo de frio e sede, atravessa o limite da solidão. Vi um "miguilim" declamando de cor esse trecho em Cordisburgo, quando refiz a viagem de Rosa em 1952 pelos descampados mineiros, e como poucas vezes na vida me comovi... como o Diabo.

Há também muita ação na história, e não por acaso Rosa dizia que cada palavra deveria conter "meditação ou aventura". Mas há uma insistência em dividir Rosa, em dividi-lo entre meditação e aventura, entre universalismo e regionalismo, entre poesia e prosa, entre filosofia e geografia. Minha edição de Grande Sertão: Veredas tem muitas páginas marcadas para que eu possa voltar a elas de tempos em tempos, e a cada revisita encontro não um Rosa ou outro, mas um Rosa múltiplo - porque o sertão "é dentro da gente", porque Dostoievski e Flaubert eram sertanejos, porque sabemos o que é o silêncio. Deve ser por isso que nos dá tanta vontade de ler em voz alta.

Tenta-se também dividir o leitor entre Rosa e Machado de Assis, lembrando suas muitas diferenças, mas esquecendo as muitas semelhanças entre nossos dois maiores escritores: as preocupações filosóficas (Deus x Diabo, alma x corpo, a busca do "terceiro"); o gosto por nomes simbólicos (Riobaldo é rio e vazio; Bento é o prometido); a identificação de uma nacionalidade íntima ou indizível (a difusa identidade brasileira, irredutível a um conceito); o jogo entre erudição e prosódia; e, acima de tudo, a percepção da solidão subterrânea.

Eles até tinham em comum uma desconfiança exagerada diante da modernidade, dos progressos, mas - assim como a escola sociológica da crítica literária brasileira toma isso para defendê-los como "críticos do capitalismo" ou coisas que o valham - não se pode acusá-los por tal posição, pois a grande arte é sempre maior que o artista. De sua quase nostalgia eles extraíram uma obra fundadora e permanente. E transcenderam divisões conceituais.

DE LA MUSIQUE (1)

O CD com a Obra Integral para Piano e Violoncelo de Beethoven por Menahem Pressler e Antonio Meneses (Avie Records, selo Clássicos) já está à venda. O que você ainda está fazendo aí sentado?

Beethoven deu ao violoncelo novas possibilidades, e nessas sonatas e variações o piano é levado a reagir a isso e se enriquecer também. A sonata Opus 69, "entre lágrimas e luto", de 1808, tem passagens lentas em que o violoncelo parece um violino a tocar uma canção, com uma leveza que não dispensa notas graves. No terceiro movimento, tudo fica ainda mais melancólico e ao mesmo tempo simples, mesmo nos trechos sincopados. Na sonata Opus 102 nº 2, composta em 1815, o Beethoven da fase final já aparece, mais anguloso e surpreendente. No entanto, o movimento central, cujo andamento não por acaso é descrito como "adagio con molto sentimento d?affetto", em ré menor e maior, dá ao cello um lirismo poderoso, em oposição plena aos que vêem em Beethoven um compositor sem os dons melódicos de Mozart (cuja Flauta Mágica recebe dele duas séries de 12 variações para o duo) ou excessivamente cerebral. No final, porém, passamos a uma fuga moderna, com o violoncelo quase seco, sem vibrato, dialogando com os ziguezagues harmônicos do piano.

O alemão Pressler e o brasileiro Meneses fazem a conversa da estrutura ampla com o vigor detalhista de modo ainda mais feliz do que nos concertos de 2003. Com eles, sofisticação e emoção rimam de fato. Já se levantou?

DE LA MUSIQUE (2)

John Neschling teve um momento de sensatez e anunciou que em 2010 deixa a Osesp. Há muitos maestros no Brasil e fora que podem dar seqüência ao bom trabalho que ele fez ao estruturar e promover a orquestra; e há alguns que são melhores maestros, que não pecam como ele na clareza e vivacidade musical. Dizem que regentes são mesmo egocêntricos e autoritários, mas nos países sérios eles não se confundem com a instituição. Neschling parece ter construído pessoalmente a Sala São Paulo, não explica muitos dos problemas ocorridos em sua gestão, ofende pessoas, afirma que a orquestra está entre as cinco melhores do mundo (!), reclama do salário público - que alguns dizem chegar a R$ 200 mil por mês - e ainda se compara a Daniel Barenboim... Como a orquestra é boa, sobreviverá bem a ele.

LÁGRIMAS

Para Jamelão, famoso como intérprete de sambas-enredos da Mangueira, tão bom ou melhor no bolero e no samba-canção; para Cyd Charisse, pernas que levaram o clássico à Broadway; para George Carlin, comediante "stand-up" sem papas na língua e antipapa. E, claro, para Ruth Cardoso - intelectual renomada na antropologia urbana, mulher elegante e independente, e que só no fato de odiar a palavra "primeira-dama" já deu exemplo de como ser uma.

MEA-CULPA

Escrevi que o tenente do Exército entregou três traficantes a outra facção do Morro da Providência, mas eram meninos, não traficantes. Na semana retrasada, citei o carro que Vittorio Gassmann dirige em Aquele Que Sabe Viver, de Dino Risi, como um Lancia, mas é um Aurelia.

RODAPÉ

Matthew Shirts, neste caderno, discordou de mim a respeito do barroquismo do livro de José Miguel Wisnik, Veneno Remédio, e citou duas idéias que considera originais. Bem, comparar Garrincha com Macunaíma e lembrar que no uso de apelidos e diminutivos há o traço do "homem cordial" são observações antigas, apenas expostas por ele de modo mais prolixo. Além disso, há a questão central, a tese de que o futebol demonstra que o projeto brasileiro de unir civilização e alegria - projeto que nasce da má leitura que Gilberto Freyre e Oswald de Andrade fizeram de Freud - é possível. Nem a civilização é necessariamente antípoda da alegria, nem se pode ignorar que no próprio futebol um pouco mais de organização e menos avacalhação - menos aversão ao "funcional", ao "objetivo" - seria fundamental dentro e fora de campo. Como disse Pelé, "meu negócio nunca foi ficar equilibrando a bola na nuca".

POR QUE NÃO ME UFANO

No blog escrevi sobre Roberto Teixeira e a "república dos compadres": "O problema do governo Lula é o problema do Brasil desde sempre: ao contrário do que pregaram a vida toda, os petistas e seus aliados tratam o poder como casa da mãe Joana (...). Cumprem direitinho a descrição de Sérgio Buarque da supremacia dos laços pessoais sobre os critérios técnicos. (...) Não me importa que haja corrupção em toda parte. O que me importa é que ela seja tão grande e tão culturalmente justificada no Brasil." Este último ponto é fundamental. Muitos leitores dizem que corrupção tem em todo lugar e acrescentam que o problema é o "capitalismo"...

Mas qual capitalismo? Quem disse que o Brasil é verdadeiramente capitalista, ou que tenha aprendido todas as lições do capitalismo moderno? A cultura do Estado-mãe não é defesa dos pobres, mas inimiga de uma economia mais produtiva e dinâmica que permita um crescimento que distribua renda não exclusivamente por programas sociais. Criar ambiente de negócios favorável ao lucro e à geração de empregos de todos os tipos - não apenas os de pouca qualificação - é tão importante quanto dar educação. Agora olhe o atual momento econômico: juros altos, pressão inflacionária, endividamento crescente, ensino péssimo... e a máquina pública gastando mais e mais. Qual capitalismo?