sábado, maio 24, 2008

VEJA Entrevista: David Baltimore


O caminho é longo

Dono de um Nobel há 33 anos, o biólogo diz que a cura da aids
ainda está longe e conclama o Brasil a pesquisar células-tronco


André Petry, de Nova York

"Acredito que devemos investir tempo, dinheiro 
e energia nas pesquisas com células-tronco embrionárias"

O biólogo David Baltimore, 70 anos, é um daqueles pioneiros da pesquisa que a academia americana produz com certa freqüência. Por isso, quando vem a público, como faz nesta entrevista, para dizer que a cura da aids está longe, tão longe que nem é possível afirmar que será descoberta, os cientistas o escutam com atenção. O vírus HIV, causador da aids, foi descoberto há 25 anos, data marcada por um encontro científico realizado em Paris na semana passada. Apesar do insucesso das pesquisas, Baltimore não é um pessimista. Ao contrário. É um entusiasta da ciência que, mesmo tendo recebido o Nobel de Medicina com apenas 37 anos, ainda se mantém ativo no laboratório e fascinado com a profissão. "Eu me entusiasmo quando estou diante de um bom texto científico, de um bom trabalho, mesmo de uma boa conversa." Além de ser um defensor convicto das pesquisas com células-tronco, ele está seguro de que esse trabalho terá resultado mais profícuo que as pesquisas sobre a cura da aids e, mais cedo ou mais tarde, trará bons resultados para a humanidade. Nesta entrevista a VEJA, Baltimore fala do desafio que o HIV representa para a ciência e convida o Brasil a integrar o mutirão científico autorizando a pesquisa com células-tronco embrionárias, tema que o Supremo Tribunal Federal julgará nesta quinta-feira, em Brasília.

Veja – Por que os experimentos para encontrar uma vacina contra a aids até hoje não chegaram a lugar algum?
Baltimore – O caminho é dificílimo. É tão difícil que, neste momento, não sei afirmar quando teremos uma vacina, nem se a teremos um dia. Tenho esperança de que a comunidade científica terá sucesso nessa empreitada, mas até hoje não descobrimos um caminho que nos dê segurança de que chegaremos a uma vacina. É fundamental que os cientistas prossigam com as pesquisas, mas o vírus HIV, pela própria constituição, é praticamente insensível a anticorpos, e a maioria das vacinas trabalha com anticorpos. Talvez o caminho do combate à aids seja outro.

Veja – Qual é o outro caminho?
Baltimore – Estamos explorando uma linha de pesquisa com terapia genética. Nossos estudos pretendem descobrir se podemos modificar o sistema imunológico de uma pessoa. Se conseguirmos isso, podemos dotar o sistema imunológico da capacidade de fazer coisas que naturalmente ele não sabe fazer, como combater o HIV.

Veja – A terapia genética, se funcionar para combater o HIV, funcionaria também contra o câncer?
Baltimore – Sim, inclusive neste momento também estamos trabalhando com câncer nas nossas pesquisas.

Veja – Que linha de pesquisa está mais próxima do sucesso contra a aids: a terapia genética ou a vacina?
Baltimore – É difícil dizer. Há grandes desafios técnicos tanto numa linha quanto na outra. O fato é que o HIV está desafiando as habilidades da ciência atual.

Veja – O que o senhor sentiu quando viu um vírus HIV pela primeira vez?
Baltimore – Foi logo que descobriram a existência do vírus, no início dos anos 80. Quando me dei conta do que estava diante de mim, confesso que fiquei pasmo e assustado. Fiquei realmente assustado. Era a primeira vez que eu via um retrovírus. Ele era capaz de fazer coisas que nunca tínhamos visto antes. De causar imunodeficiência, ou seja, de tornar ineficiente nosso sistema imunológico. Foi impressionante e assustador.

Veja – A Justiça brasileira vai decidir em breve se autoriza ou não a pesquisa com células-tronco de embriões humanos descartados nas clínicas de fertilização. Quem é contra diz que destruir um embrião equivale a um assassinato. O que o senhor acha?
Baltimore – Não sei falar a respeito do aspecto jurídico do assunto, mas do ponto de vista científico é uma discussão sem sentido. Afinal, os embriões humanos foram descartados porque o casal já teve o número de filhos que queria ou por qualquer outra razão. O fato é que os embriões serão destruídos de qualquer modo. A questão é saber se serão destruídos fazendo o bem a outras pessoas ou não. A meu ver, a resposta é óbvia.

Veja – Sendo um país onde a pesquisa científica ainda engatinha, o Brasil pode fazer alguma diferença entrando para o clube das nações que realizam pesquisas com embriões?
Baltimore – Sem dúvida. Nunca estive no Brasil, mas conheço cientistas brasileiros e tenho colegas que já lecionaram no país. Por isso, posso dizer que, se o Brasil adotar uma linha de pesquisa de alto nível, sua contribuição poderá ser enorme.

Veja – Cientistas que defendem a preservação dos embriões nas clínicas de fertilização costumam dizer que as pesquisas com células-tronco adultas são tão ou mais promissoras que as com células-tronco embrionárias. É verdade?
Baltimore – Se eu fosse fazer uma aposta, diria que as células-tronco adultas serão as primeiras a nos apresentar resultados concretos, porque nós as conhecemos melhor, sabemos mais sobre seu funcionamento. Nesse sentido, quando se trata de buscar resultados mais imediatos, as células-tronco adultas são mais promissoras. Mas, a longo prazo, as células-tronco embrionárias são muito mais promissoras, porque têm potencial de transformação muito superior. Elas têm capacidade de evoluir para qualquer tecido humano, mas ainda não as conhecemos tão bem. Produzir resultados a partir das células-tronco de embriões, portanto, é algo que vai levar mais tempo. Mas a tendência é que os resultados, quando surgirem, sejam mais importantes do que os advindos das pesquisas com células-tronco adultas.

Veja – O senhor recomendaria que a pesquisa se concentrasse nas células-tronco adultas porque o resultado tende a ser mais rápido?
Baltimore – Não é prudente paralisar nenhum caminho promissor de pesquisa, mas acredito que devemos investir tempo, dinheiro e energia nas pesquisas com células-tronco embrionárias. Como elas têm potencial de evolução praticamente ilimitado, os experimentos aí vão produzir mais conhecimento científico.

Veja – Há risco de as pesquisas com células-tronco consumirem tempo, dinheiro e energia e resultarem em nada?
Baltimore – As células-tronco são um universo fascinante, certamente produzirão algum resultado, mas os problemas que temos pela frente são grandes. O caminho é longo.

Veja – Qual o grande desafio?
Baltimore – Controlar a evolução das células-tronco. Como elas têm imenso potencial de transformação, temos de descobrir como fazê-las evoluir num sentido específico, no sentido que desejamos. Por exemplo, se quisermos que se transformem em um nervo, em um tecido cardíaco ou ósseo, teremos de ter garantias de que a evolução resultará em um nervo, em um tecido cardíaco ou ósseo. Nosso desafio é saber como evitar que cresçam de modo desordenado, porque isso pode resultar num câncer. Além de descobrirmos como controlar essa evolução, temos de ser capazes de aplicar esse controle de modo rotineiro e sistemático. Ainda não temos respostas para essas questões.

Veja – Religião e ciência são incompatíveis?
Baltimore – Entendo que ciência e religião atuam em campos distintos. Uma não responde às perguntas da outra. Por isso, não vejo incompatibilidade.

Veja – O governo do presidente George W. Bush, cujo fundamentalismo religioso barrou todo um campo de pesquisas científicas, é um governo contra a ciência?
Baltimore – Não sei se é contra, mas certamente esse governo tem sido notável na falta de interesse pela ciência. Até o órgão de apoio à ciência, que costumava funcionar na Casa Branca, foi transferido para outro lugar em Washington. Tudo se soma para mostrar que o atual governo não se interessa pelo assunto.

Veja – O governo da Califórnia aprovou a criação de um fundo de 3 bilhões de dólares para financiar as pesquisas com células-tronco de embriões humanos, já que a Casa Branca decidiu fechar o cofre. Isso já produziu bons resultados?
Baltimore – Como o governo em Washington não apóia as pesquisas com embriões, os cientistas enfrentam constrangimentos legais porque não sabem se podem ou não apostar em certos caminhos de pesquisa. Isso acaba travando até mesmo a liberação de recursos financeiros. Quando deixei o comitê que escolhia os projetos científicos que o governo da Califórnia financiaria, havia pouco dinheiro liberado. Alguns laboratórios chegaram a fazer belos trabalhos apoiados pela política científica do estado, mas ainda é cedo para falar em bons resultados. Temos apenas uns dois anos de trabalho nisso. É pouco.

Veja – O desinteresse do governo americano ajudou a atrasar o progresso científico no mundo?
Baltimore – Acredito que sim. No caso das células-tronco, por exemplo, cujo financiamento com verba federal é limitado a apenas algumas linhas de pesquisa, a contribuição dos Estados Unidos poderia ter sido muito mais ampla. O mundo tem feito um trabalho fantástico nessa área, mas a ciência americana poderia ter ajudado. Por sorte, isso deve acabar com a eleição presidencial, sejam quais forem os candidatos e seja quem for o eleito. Tanto o republicano (o senador John McCain) quanto os democratas (os senadores Barack Obama e Hillary Clinton) têm mostrado isso. A atual política científica americana deve ser modificada imediatamente. Nos Estados Unidos, apesar dos investimentos privados, o governo é o grande incentivador da ciência. Como a Casa Branca historicamente cuida com carinho do assunto, o país conseguiu um desenvolvimento científico notável, mas nem sempre a ciência tem apoio da política.

Veja – A falta de apoio político retarda o avanço de certos experimentos ou chega a paralisá-los por completo?
Baltimore – Na década de 70, por exemplo, a fertilização in vitro era um assunto delicado, gerava polêmica, e os políticos preferiram tomar distância. No entanto, as pesquisas acabaram se desenvolvendo mesmo assim. Nesse caso, a falta de apoio governamental teve outra decorrência negativa nos Estados Unidos. A fertilização in vitro se desenvolveu como uma indústria sem regulamentação, porque o governo tinha receio de se envolver com o assunto. A fertilização in vitro é sensacional, deu vida a muitas crianças que de outro modo não teriam nascido, mas o fato é que não conhecemos a qualidade do trabalho que se faz em muitos lugares. Isso não é recomendável.

Veja – As crescentes denúncias de fraudes científicas não podem minar a credibilidade de que a ciência precisa justamente num momento em que lida com assuntos polêmicos, como a clonagem?
Baltimore – Precisamos entender que temos visto mais casos de fraude porque estamos fazendo mais ciência. Não acho que seja um assunto que já tenha chegado ao ponto de ameaçar a credibilidade dos cientistas e das suas pesquisas.

Veja – Já se passaram mais de vinte anos do escândalo em que a brasileira Thereza Imanishi-Kari foi acusada de falsificar dados num experimento em que ela trabalhava com o senhor. O seu envolvimento nesse caso, que acabou resultando na sua renúncia à presidência da Universidade Rockefeller, emperrou sua carreira de algum modo?
Baltimore – É claro que isso tornou minha vida mais difícil, mas às vezes é o preço que temos de pagar por adotar uma posição que julgamos correta. Thereza é brasileira e, por ser estrangeira, tinha mais dificuldade de se defender. Eu estava defendendo uma colega. Tenho orgulho de ter ficado ao lado dela. Thereza estava sendo acusada injustamente.

Veja – Os cientistas que se tornam celebridades mundiais com suas pesquisas podem acabar se sentindo pressionados a sempre produzir coisas espetaculares. Em alguns casos, isso pode estimular uma fraude?
Baltimore – Acredito que em sua maioria os colegas que chegaram ao ponto de ganhar fama mundial por seus trabalhos já provaram que são cientistas extraordinários. Talvez isso tenha sido um problema no caso do coreano que fraudou sua pesquisa (refere-se ao biólogo sul-coreano Woo-Suk Hwang, que fraudou um trabalho em que dizia ter clonado células-tronco embrionárias). O problema é que ele virou um superstar sem ter feito muita coisa antes. Mas é um problema raro.

Veja – O senhor recebeu o Prêmio Nobel de Medicina quando tinha 37 anos, em 1975. De lá para cá, não teve de lidar com um peso excessivo sobre os ombros, um compromisso de ser genial em cada passo do seu trabalho?
Baltimore – Na verdade, é o contrário. A maioria das pessoas acha que depois de receber um Nobel você não vai fazer mais nada de relevante. Muita gente até fica impressionada quando sabe que eu ainda estou fazendo pesquisa.

Veja – O Nobel ajudou a lhe abrir portas para ganhar financiamento para suas pesquisas?
Baltimore – Nos Estados Unidos, o Nobel não abre portas. O grosso dos financiamentos vem do governo federal, e o pessoal do governo até costuma olhar quem tem um Nobel com mais atenção, fazendo um escrutínio mais rigoroso para se certificar da real importância do trabalho. Eles querem descartar a suspeita de que o laureado esteja pedindo dinheiro sem muito fundamento, confiando apenas no prestígio de ser um prêmio Nobel.

Veja – O senhor ainda fica empolgado quando aparece alguma novidade no laboratório?
Baltimore – Completamente. É empolgante participar do cotidiano da ciência, do seu passo-a-passo, do seu progresso. Sinto o mesmo entusiasmo de quando era jovem. E me entusiasmo quando estou diante de um bom texto científico, de um bom trabalho, mesmo de uma boa conversa. Eu poderia me aposentar, mas essas coisas me empolgam de verdade.

Veja – Aposentar-se, então, jamais?
Baltimore – Depende. Não sei o que virá primeiro, se a morte ou a aposentadoria.