sábado, maio 31, 2008

O desafio da Amazônia


Mario Cesar Flores


O destino da Amazônia não pode ser o de santuário à margem do desenvolvimento nacional, como pretende o ecofanatismo, hipótese já inviável e mais ainda com o aumento da população e sua necessidade de espaço e recursos, nem o de contemporização licenciosa com a permissividade predatória, que atende a interesses econômicos. A solução desse dilema depende de várias ações interativas. Basicamente, o balizamento dos instrumentos orientadores/reguladores do desenvolvimento da Amazônia (Plano Amazônia Sustentável, zoneamento ecológico-econômico, outros) pelo conhecimento da realidade (meio ambiente/ecologia, recursos naturais) e de suas implicações no País e no mundo. E o controle do desenvolvimento, que o proteja da ação humana desordenada, quando não delituosa, e o mantenha na moldura balizada pelo conhecimento.

A precariedade do conhecimento abre espaço a interpretações interesseiras, prejudiciais à prudência adequada à incerteza. Cabe às nossas instituições de pesquisa, de que são exemplos vocacionados para a região o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e o Museu Emílio Goeldi, papel de destaque na busca do conhecimento sobre a relação homem-natureza, das suas conseqüências climáticas ao empobrecimento da biodiversidade e à degeneração do solo e dos rios, que ameaça o potencial do futuro da região. De qualquer forma, e a despeito do conhecimento insatisfatório, à exceção do interesse econômico beneficiário da desordem facilitada por essa deficiência, por vezes associado ao interesse político paroquial - simbiose que chega a atribuir a atenção à Amazônia à intervenção externa na nossa soberania (!) -, já existe razoável consenso sobre a conveniência de cuidados que evitem o pior, se a ciência confirmar os prognósticos sombrios.

Passemos ao controle da dinâmica regional, hoje falho e sujeito a dúvidas e contestações.

As injunções da atenção exigida pela natureza e as da segurança e defesa - fronteiras permeáveis, delitos de toda ordem, a questão indígena e a atuação de algumas ONGs nessa questão e na biopirataria -, todas complicadas pelas especificidades da região, conduzem naturalmente à conveniência do resgate da lógica inspiradora do Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam): o monitoramento tecnológico abrangente, a serviço de órgãos com atribuições temáticas - Ibama, Funai, Incra, Forças Armadas, órgãos policiais e de defesa civil e outros. Apesar de seu início tumultuado, o Sivam foi implantado, mas, exceto o controle do espaço aéreo e da navegação aérea, seus usuários não se adequaram para usá-lo e seu proveito está aquém do seu potencial.

O resgate dessa lógica significa modernizar o monitoramento, assegurando-lhe condições que propiciem aos órgãos responsáveis as informações adequadas à atuação cotidiana requerida pela crescente presença humana na região - informações que demoram hoje o bastante para prejudicar ou invalidar a adoção de medidas preventivas e corretivas. Mas isso não é tudo: a eficácia do controle depende também do desempenho dos órgãos incumbidos dessas medidas, em geral complementares, cujas perspectivas científicas ou ideológicas e ações práticas nem sempre são harmônicas, quando não influenciadas por interesses econômicos e/ou políticos - um caldo de cultura propício à tolerância com os delitos. Há que unificar perspectivas, organizar a cooperação e eliminar a ambigüidade útil às ilicitudes e à fuga da responsabilidade - a confusão sobre a qual órgão cabe "aquele" problema sensível à atenção pública ou a interesses fortes. E há que adequá-los - adequação humana e material - para que possam responder com eficiência às informações do monitoramento, eliminando-se, assim, a costumeira "falta de recursos", que freqüentemente justifica a omissão e até a complacência.

A busca do conhecimento da região e a credibilidade do controle do desenvolvimento regional no respeito às possibilidades e limitações definidas na moldura ambiental estruturada no conhecimento serão sinalizações afirmativas que se contraporão judiciosamente à retórica internacionalista e às críticas comumente mal fundamentadas, volta e meia manifestadas na Europa e nos EUA por ONGs, mídia e até autoridades públicas, como foi a menção do presidente Mitterrand ao "droit d?ingérance". Serão indicações irrefutáveis de que a Amazônia brasileira é mesmo brasileira (fora espanhola até o ocaso de Tordesilhas, depois luso-brasileira e finalmente brasileira) e o uso de seu espaço e seus recursos é direito brasileiro.

Contrapor-se-ão judiciosamente porque esse direito, como todo direito, não se configura no voluntarismo vazio: embora ainda a ser mais bem conhecida, a influência supra-regional da natureza amazônica atrai a atenção sobre a região, cujo uso insatisfatoriamente planejado, regulado e controlado gera preocupações no mundo, algumas razoáveis, outras, no mínimo, questionáveis. Em particular, a conexão do desmatamento (exploração da madeira, avanço agropecuário) com o clima regional e global, que, apesar de carente de estudo, já pesa na sensibilidade mundial, acabará induzindo pressões políticas e econômicas (embargos, selo verde, certificações restritivas) capazes de nos criarem constrangimentos e preocupações.

Todo esse quadro sugere, realística e compreensivelmente, que o usufruto soberano e tranqüilo da posse e do domínio conferidos ao Brasil pela combinação da natureza com a História tem um preço, que não podemos simplesmente ignorar: a compatibilização racional e responsável entre esse usufruto e os cuidados com a natureza.

E isso não se resolve com arroubos de ufanismo nacionalista, sinceros ou a serviço de interesses. É um desafio de tamanho amazônico, para cientistas, estadistas com visão de futuro e administradores públicos competentes - e para os cidadãos brasileiros brancos, negros e índios que vivem na região.

Mario Cesar Flores é almirante-de-esquadra (reformado)