sábado, maio 24, 2008

A história mais triste do pop


Em Controle, um instante de brilho e perda intensos na música:
a ascensão e o suicídio de Ian Curtis, líder do Joy Division


Isabela Boscov

Divulgação
Sam Riley como Curtis: além da semelhança física, a habilidade para recriar os transes do cantor no palco

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No fim de 1979, aos 24 anos, o fotógrafo holandês Anton Corbijn mudou-se para a Inglaterra com o propósito – ou a missão, como ele recentemente descreveu – de se juntar a um movimento cujo epicentro era a então decadente cidade industrial de Manchester: a desilusão pós-punk que tinha seu maior expoente no Joy Division. Em apenas duas semanas no país, Corbijn já havia produzido as primeiras de uma série de imagens marcantes da banda, em que a desolação e a austeridade eram realçadas pelo preto-e-branco saturado. Seis meses depois, esses retratos viriam a adquirir dimensão icônica: em 18 de maio de 1980, pouco antes de sua primeira turnê americana e dois meses antes de completar 24 anos, Ian Curtis, o líder do quarteto, enforcou-se na cozinha de sua casa. Mesmo antes de esse fim abrupto aprofundar as características messiânicas da música e da presença de Curtis e ampliar sua influência sobre o pop (o contemporâneo, inclusive), o Joy Division já havia ultrapassado em muito as fronteiras de Manchester. Era, ainda, uma banda para conhecedores. Mas nenhum conhecedor, de qualquer lado do Atlântico, discutiria que seu som constituía o evento mais original e relevante a atingir o pop em muito tempo. Controle – A História de Ian Curtis (Control, Inglaterra/Estados Unidos, 2007), o longa-metragem que está desde quinta-feira em cartaz e com o qual Anton Corbijn fecha o círculo iniciado quase três décadas atrás, trata da faceta íntima dessa revolução: de como Curtis abraçou seus demônios, mudou o rock e então sucumbiu ao que ele próprio criara.

Rodado no mesmo preto-e-branco severo com que Corbijn registrou centenas de nomes fundamentais da música, de Frank Sinatra ao U2, Controle transborda, desde o início, a perplexidade e o desconsolo com o que se sabe será o seu fim. Curtis, ainda adolescente, casa-se com a namorada, Debbie, que logo fica grávida; responde a um anúncio de jornal pedindo um vocalista para uma banda então chamada Warsaw. ("Varsóvia", em inglês, na primeira das referências ao abalo a que o nazismo submetera a Europa: a Joy Division, ou "Divisão do Prazer", designava o contingente de prostitutas que atendiam os oficiais alemães, enquanto a New Order, ou "Nova Ordem", era o que Hitler pretendia instituir com a vitória do III Reich.) Curtis se revela o líder natural do grupo e escreve letras que invertem o ponto de vista oferecido pelo punk: em vez de mandar tudo para o inferno, como seus predecessores, o que ele tem a dizer é que o inferno já é aqui. Com seus shows estranhos, em que os instrumentistas permanecem quase estáticos enquanto Curtis se debate ao microfone, o Joy Division começa a reunir à sua volta as pessoas que depois irradiariam o movimento de Manchester para o mundo: além de Corbijn, o jornalista com propensão para showman Tony Wilson, o produtor musical Martin Hannett, o agente Rob Gretton e o designer Peter Saville – essa, uma parte da história muito bem explicada pelos seus próprios protagonistas (os que sobreviveram) no documentário Joy Division (Inglaterra, 2007), que faz um interessante conjunto com Controle e tem estréia prevista no Brasil para o dia 6 de junho.

O arco que o documentário do inglês Grant Gee descreve por intermédio de entrevistas, da euforia inicial ao golpe desferido pela morte de Curtis, Controle percorre por meio da reencenação. No decorrer dessa curtíssima trajetória, que foi de 1976 a 1980, o músico manifestou um caso grave de epilepsia e se apaixonou por uma jornalista belga, Annik Honoré, sem no entanto conseguir romper com a mulher. Conforme as memórias de Debbie Curtis, publicadas na década de 90 e nas quais Controle em grande parte se baseia, ambos os acontecimentos o cindiram de forma irremediável.

Nada é mais emblemático da maneira violenta e desprotegida com que Curtis chegou ao mundo da celebridade pop do que seus transes no palco. Antes mesmo do diagnóstico de epilepsia, eles já se pareciam com surtos ou convulsões. Esse, não por acaso, é o aspecto mais perturbador das cenas de arquivo de Joy Division, e também da recriação de Controle: a maneira como o novato Sam Riley, que tem impressionante semelhança física com Curtis, não só metaboliza a introspecção do músico, como reproduz essa sua brutal exposição pública. Uma das teses que, vistos em dupla, o filme de Corbijn e o documentário oferecem é que o momento tão breve em que Curtis brilhou foi o último instante de inocência do pop. A outra, ainda mais triste, é que não existe explicação capaz de atenuar o irreparável: ao se matar aos 23 anos, Curtis roubou a si e aos outros coisas que não se pode imaginar como seriam – exceto que seriam grandes.