sábado, maio 31, 2008

Garotinho é indiciado por formação de quadrilha


Desta vez, "quadrilha armada"

O ex-governador Anthony Garotinho é acusado
pela PF de ser o chefe político do bando que agia
na cúpula da Polícia do Rio de Janeiro


Ronaldo Soares

Gabriel de Paiva/Ag. O Globo

PEGOS COM A MÃO NA MASSA
Lins e Garotinho em exposição de armas apreendidas: dupla do barulho

Há muito tempo se sabe que a polícia fluminense é contaminada pela corrupção e pelo envolvimento com bicheiros e traficantes de drogas. Também era notória sua ineficiência. Com 51 homicídios para cada 100 000 habitantes, o Rio é o segundo estado mais violento do país. Mesmo assim, a operação da Polícia Federal, chamada Segurança Pública S.A., que prendeu sete policiais na semana passada, causou surpresa. Dela resultou o indiciamento do ex-governador Anthony Garotinho por formação de quadrilha armada. Nunca antes um político tão proeminente havia sido acusado de crime tão grave. Garotinho, que já foi candidato à Presidência da República e atualmente preside o PMDB no estado, representa o que há de pior na política: populismo, fisiologismo e nepotismo, entre outras mazelas. Ao seu currículo, soma-se agora a suspeita de ter usado seu período no Palácio Guanabara (e também o de sua mulher, Rosinha) para acobertar as ações de um grupo de policiais que, encastelados na chefia da Polícia Civil, barbarizou o Rio de Janeiro cometendo ilícitos variados. A lista inclui facilitação de contrabando, formação de quadrilha, proteção a contraventores, cobrança para nomeação de delegados, lavagem de dinheiro, corrupção ativa e passiva.

Para a PF, Garotinho era o chefe político do bando, embora não haja provas até o momento de que tenha se beneficiado financeiramente. Abaixo dele estava o deputado estadual do PMDB Álvaro Lins, que durante seis anos foi o chefe da Polícia Civil do estado. Lins chegou a ser preso em um dos quatro imóveis que, segundo as investigações, foram comprados com a finalidade de lavar o dinheiro obtido ilegalmente. Todos em nome de parentes. Seu patrimônio é avaliado, por baixo, em 2,2 milhões de reais, e inclui carros de mais de 160 000. Tudo isso comprado no momento em que seu salário era de 7 000 reais, ao passo que suas despesas mensais somavam 25 000, segundo uma planilha apreendida na casa de um dos integrantes da quadrilha.

O bando tinha como atividade principal dar cobertura a bicheiros ligados à máfia dos caça-níqueis. Além de venderem proteção para um dos grupos que operam o jogo, Lins e seus camaradas são suspeitos de realizar operações contra bicheiros rivais somente para enfraquecê-los na disputa pelos pontos mais quentes. A quadrilha também promoveu o loteamento de delegacias no Rio, nomeando delegados de confiança que cobravam propina dos investigados. "Os nomeados tinham o compromisso de fazer mensalmente um repasse em dinheiro que servia não só para o enriquecimento da quadrilha mas para financiar campanhas políticas", diz o superintendente da PF no Rio, Valdinho Jacinto Caetano. Num dos casos investigados, a polícia descobriu que a "caixinha" a ser repassada ao bando era de 25.000 reais.

Domingos Peixoto/Ag. O Globo

RUMO AO XADREZ
Álvaro Lins (no centro), no momento da prisão: patrimônio avaliado em 2,2 milhões de reais

Embora não tenha sido preso, Garotinho viu sua casa ser revistada por mais de quatro horas. O ex-governador teria nomeado integrantes da quadrilha para funções estratégicas e, em pelo menos uma ocasião, teria falado ao telefone sobre as atividades ilícitas. "Sem a participação do ex-governador, a quadrilha não conseguiria se manter", afirma o procurador regional da República Paulo Fernando Corrêa. Entre as escutas telefônicas feitas pela PF, há uma em que Lins, já afastado para disputar as eleições, pede a Garotinho a troca de um delegado que não estaria colaborando com o bando. O ex-governador se compromete a providenciar a mudança. "Então deixa que eu vou mandar fazer. Deixa aqui. Qual é o nome?", diz Garotinho. A mudança se consumou.

A denúncia do Ministério Público contra os dezesseis integrantes do bando será analisada pelos juízes do Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Na última sexta-feira, a Assembléia Legislativa do Rio (Alerj) mandou soltar Lins. A instituição tem o poder constitucional de decidir sobre a manutenção da prisão de deputados, nos casos em que considere ter havido arbitrariedade. Um parecer da procuradoria da Casa julgou a prisão ilegal. Ele foi preso porque estava em um dos apartamentos supostamente comprados com dinheiro ilegal e colocados em nome de terceiros. Na visão do MP e da PF, o fato de morar no imóvel caracterizaria o "estado permanente de flagrante", figura jurídica que se aplica ao crime de lavagem de dinheiro. A Alerj entendeu de outro modo. A casa é presidida pelo deputado peemedebista Jorge Picciani, representado pelo mesmo escritório de advocacia ao qual Lins entregou sua defesa, o do criminalista Sergio Mazzillo – também advogado de Garotinho. Caso seja condenado, o deputado poderá pegar entre onze e 36 anos de prisão.

Nos últimos anos, o Rio de Janeiro, em especial a cidade, tem vivido a angústia da criminalidade crescente e da inação da polícia. Duas décadas atrás, isso ocorria porque o ex-governador Leonel Brizola se perdia em ações de puro populismo. A polícia não subia às favelas para combater vendedores de drogas e, com isso, o tráfico se desenvolveu como um câncer pelas encostas da capital fluminense. A escadinha do populismo, é claro, produziu oportunidades. No governo Garotinho criou-se uma engrenagem de arrecadação marginal, revelada agora. Também nesse período, milícias de policiais passaram a disputar espaço com traficantes no domínio de territórios em favelas e, uma vez instalados, eles começaram a explorar o jogo de caça-níqueis – além de ganhar em cima de atividades como distribuição de gás, canais de TV piratas e transporte alternativo.

Cada um a seu modo, os governos Brizola e Garotinho foram terríveis para a segurança no Rio de Janeiro. O efeito da infiltração de grupos criminosos e corruptos na máquina estatal foi devastador. Inclusive porque minou a confiança dos cidadãos nas instituições. Na Chicago do período da Lei Seca, que vigorou entre 1920 e 1933, a organização criminosa controlada por Al Capone não só espalhou o medo e a violência pelas ruas da cidade como pôs na cadeira de prefeito, por três mandatos, o gângster "Big Bill" Thompson. O Rio de Janeiro que surge das páginas do inquérito da Polícia Federal ao longo da operação Segurança Pública S.A é a Chicago brasileira.

Experiências internacionais recentes mostram que é possível limpar a corporação policial. Um dos exemplos pioneiros ocorreu em Hong Kong. Até os anos 70, a cidade tinha uma polícia tão corrupta que o chefe da corporação acabou fugindo para o exterior para não ser preso. O episódio inspirou a criação de uma agência anticorrupção com poderes para passar em revista todas as atividades policiais e aplicar pesadas punições. Ela acabou se tornando referência para outros países. Em Nova York, nos anos 90, policiais envolvidos com o crime foram afastados e novos agentes foram treinados para preencher os cargos de confiança em setores estratégicos da polícia. A faxina incluiu até mesmo uma mudança de uniformes, para romper com qualquer associação com a imagem de banditismo que a corporação tinha no passado. A operação da última semana pode representar um marco na tentativa de limpar a corrupção na máquina fluminense. Mas é preciso que o trabalho não pare por aqui. Diz o procurador Paulo Fernando Corrêa: "O que chegou às nossas mãos é só a pontinha de um iceberg".

Supermercado do crime

A quadrilha que agia na Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro montou um verdadeiro balcão de negócios escusos, que operava a partir da cúpula da Polícia Civil

Fotos Marcos Fernandes/Luz e Severino Silva/ODR
Máfia dos caça-níqueis
Os policiais não reprimiam o funcionamento de máquinas caça-níqueis em regiões da cidade em que bicheiros exploram essa atividade. Além disso, facilitavam o contrabando para o funcionamento dessas máquinas

Lavagem de dinheiro
Boa parte dos recursos provenientes da ação da quadrilha foi usada na aquisição de bens e imóveis colocados em nome de "laranjas" do deputado Álvaro Lins

Proteção de bicheiros
A quadrilha vendia proteção ao grupo do bicheiro Rogério Andrade, sobrinho de Castor de Andrade, morto em 1997. Além disso, os policiais faziam operações para reprimir contraventores inimigos de seus protegidos

Loteamento de delegacias
A quadrilha nomeava policiais de sua confiança para chefiar delegacias. Os indicados tinham a incumbência de fazer repasses mensais ao bando, provenientes da cobrança de propina. A caixinha servia para enriquecimento do grupo e para campanhas políticas