sexta-feira, maio 02, 2008

Falsas divisões


EDITORIAL
O Globo
2/5/2008

Um grupo de artistas, acadêmicos, sindicalistas e representantes de movimentos sociais contrários a políticas de cotas raciais dirigiu-se ao Supremo Tribunal Federal para entregar uma carta ao presidente do STF, Gilmar Mendes. O documento afirma que os vestibulares que adotam o mecanismo das cotas acabam privilegiando estudantes de classe média "arbitrariamente classificados como negros".

No começo de abril, o STF começou a julgar as ações contra o ProUni (Programa Universidade para Todos), defendido pelo Ministério da Educação, que oferece bolsas em universidades e faculdades a estudantes que se declararem indígenas, pardos ou negros. É nesse contexto que se posiciona o atual manifesto, que enfatiza: "A crença na raça é o artigo de fé do racismo. A fabricação de "raças" oficiais e a distribuição seletiva de privilégios segundo rótulos de raça inocula na sociedade o veneno do racismo, com seu cortejo de rancores e ódios."

Não se trata de negar que, mesmo no Brasil, exista preconceito racial; mas, diz a carta, "depois da Abolição, a nação elaborou uma identidade amparada na idéia anti-racista da mestiçagem, e produziu leis que criminalizam o racismo".

Um dos defeitos da discussão das cotas é desviar a atenção da realidade da educação brasileira. "Há um programa inteiro de restauração da educação pública a se realizar", diz o manifesto dos intelectuais, "que exige políticas adequadas e vultosos investimentos. É preciso elevar o padrão do ensino, mas, sobretudo, romper o abismo entre as escolas de qualidade, quase sempre situadas em bairros de classe média, e as escolas devastadas das periferias urbanas, das favelas e do meio rural".

É nesse abismo que reside a verdadeira injustiça; e enquanto ele não for atacado de frente, criar cotas raciais em faculdades e universidades é de uma artificialidade patente. Como lembrou o médico e escritor Drauzio Varella, em artigo recente para a "Folha de S. Paulo", a caracterização das raças, em termos históricos, é precária e recente: há não muito tempo, éramos todos negros, originários do continente africano, e só circunstâncias muito particulares é que produziram as diferenciações de hoje. Mas é sobre essa base frágil que trabalham os que, no fundo, estão criando argumentos para a perpetuação do racismo.