sábado, abril 26, 2008

Índios O conflito em Roraima

Reserva de insensatez

Como o governo conflagrou Roraima ao demarcar uma
área exagerada para a reserva Raposa Serra do Sol


Leonardo Coutinho, de Normandia

Fotos Fernanda Preto
Família Ferreira: além de terem nome cristão, esses macuxis falam português no dia-a-dia, contam com automóvel e fazem compras em supermercado

O processo de demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, é o mais antigo e conturbado da história do Brasil. Os primeiros documentos oficiais que recomendam a sua criação remontam a 1917. Ficaram esquecidos por sessenta anos, até que a Fundação Nacional do Índio (Funai) iniciasse os trâmites de reconhecimento da área. Em 1977, a entidade concluiu que a terra destinada a 194 aldeias dos troncos caribe e aruaque deveria abranger 3 500 quilômetros quadrados. A demarcação empacou e brancos se instalaram nas fronteiras dessa área. Em 2005, a reserva foi finalmente demarcada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva – com um território de 17 000 quilômetros quadrados, quase cinco vezes mais do que o previsto inicialmente. Resultado: ela engoliu os brancos que estavam instalados nas bordas do perímetro original. Em sua extensão, há fazendas de arroz que respondem por 6% do PIB de Roraima e abastecem também o Amazonas e o Pará. A reserva abarcou ainda os cânions do Rio Cotingo, apropriados para a construção de uma hidrelétrica considerada essencial pelo governo do estado, e uma região de fazendas ocupada por brancos desde o século XIX.

A princípio, Roraima reagiu à demarcação da reserva com a decretação de luto oficial de sete dias. Depois, como era de esperar, o pau começou a comer. Os arrozeiros passaram a fechar estradas e acessos à Raposa Serra do Sol. E multiplicaram-se os casos de ameaça, agressão e depredação de patrimônio envolvendo índios e brancos. O índio macuxi Dionito José de Souza, que dirige o Conselho Indígena de Roraima, denunciou à polícia que, desde 2005, foram incendiados o seu centro comunitário e malocas de três aldeias. No mês passado, a Polícia Federal foi convocada para retirar os brancos da reserva. Os arrozeiros passaram, então, a usar táticas terroristas. Estacionaram um carro-bomba diante de prédios usados pelos policiais, fizeram barricadas de fogo e se armaram com coquetéis molotov. À frente dos protestos estava o rizicultor Paulo Quartiero, prefeito de Pacaraima, cidade que fica na divisa da reserva. Gaúcho, Quartiero chegou a Roraima em 1976. Montou um patrimônio avaliado em 53 milhões de reais, boa parte dele anexada pela Raposa Serra do Sol. Quartiero não mede esforços para defender o que é seu. Há vinte dias, sua secretária, Erotéia Mota, uma espécie de musa dos arrozeiros, pintou a bandeira nacional no rosto, atou um cinturão de explosivos ao corpo e ameaçou detoná-lo se os policiais invadissem as fazendas de arroz. Na semana passada, ela foi presa por manter em casa munição de uso restrito das Forças Armadas. "Temos um exército de bons brasileiros para evitar que os índios declarem independência e transformem isso aqui em um Kosovo", diz o prefeito Quartiero.


Joaquim de Melo: seu avô comprou uma fazenda na região em 1886. Agora, a Funai o chama de invasor

Roraima está conflagrada porque o governo cometeu um evidente exagero na demarcação das reservas indígenas do estado. Há trinta anos, o então território era ocupado majoritariamente por índios, que viviam em harmonia com os brancos. A boa convivência foi interrompida quando as demarcações começaram a se estender sobre partes expressivas de Roraima. Hoje, as 32 reservas indígenas que lá foram estabelecidas cobrem 46% do território do estado. Sozinha, Raposa Serra do Sol responde por 7,5% da área do estado. É uma superfície equivalente a doze cidades de São Paulo, mas lá moram apenas 19 000 índios. Ao delimitarem uma reserva desse tamanho, os antropólogos da Funai pressupunham que os índios continuariam vivendo como nômades, da caça e da pesca, a exemplo de seus ancestrais. Mas eles estão totalmente integrados às cidades do entorno. Moram em casas, fazem compras em supermercados e falam português. Muitos esqueceram ou nem sequer aprenderam a língua nativa. Seus filhos freqüentam escolas públicas. Parte deles trabalha em fazendas de brancos, enquanto outros plantam grãos e criam gado por conta própria. Cerca de 6% do rebanho de Roraima pertence aos índios, que abastecem os açougues locais. "O fato de sermos índios não nos impede de ser produtivos", afirma Dionito de Souza. E, como no mundo dos brancos, quem não tem renda própria ganha bolsa-família.


O fazendeiro Mário Corrêa: depois de ser despejado pela Funai, foi obrigado a viver como um sem-terra

A Funai também desconsiderou direitos adquiridos pelos brancos. Aos 85 anos, o agricultor Joaquim de Melo espera a ordem de despejo da Polícia Federal, que mantém na área 500 homens para desocupar a reserva. Melo tem documentos oficiais que mostram que seu avô adquiriu o título definitivo de sua terra em 1886. Ele guarda comprovações de pagamento de impostos desde então. Ainda assim, é considerado invasor, será expulso e receberá uma indenização de 200 000 reais pela sua fazenda de 2 000 hectares. "Não sei o que vou fazer, porque minha vida está no fim e não tenho tempo para recomeçar em outro lugar", diz. Melo provavelmente terá o mesmo destino de Mário Jorge Corrêa, de 55 anos, que já foi despejado. Corrêa recebeu 122 000 reais de indenização, menos do que gastou para cercar a sua antiga propriedade. Hoje, ele mora com a família ao lado de um acampamento do MST, numa barraca de lona em área cedida pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Corrêa foi obrigado a sair de sua fazenda, que acabou sendo ocupada por outros brancos, com a permissão dos índios e da Funai. O sobrado da propriedade foi convertido em missão religiosa e é habitado por freiras do Conselho Indígena de Roraima.


Marlene Bergamo/Folha Imagem
Barricada de fogo ateada pelos arrozeiros: estado em pé de guerra

O problema ultrapassou os limites de Roraima, para ganhar uma dimensão nacional. O Exército, habituado a recrutar soldados em aldeias indígenas da região, agora combate a criação de reservas como a Raposa Serra do Sol – que, para completar, ainda avança sobre áreas de fronteira. O comandante militar da Amazônia, general Augusto Heleno Pereira, irá ao Congresso para explicar mais uma vez por que a extensão da Raposa Serra do Sol ameaça a paz e a segurança daquele pedaço do Brasil. É mais uma oportunidade para o governo corrigir esse equívoco. Um imenso equívoco.