quarta-feira, abril 23, 2008

Mães e madrastas por Richard Moneygrand

Roberto da Matta -
23.4.2008
| 11h23m

Mães e madrastas

Numa mensagem eletrônica, o famoso brasilianista Richard Moneygrand comenta os eventos que têm mexido com os nossos corações, começando com a tragédia da menina Isabella.

Eis a mensagem:

Caro Roberto:

Vocês foram um país patriarcal, escravocrata, controlado pelo pai-marido-irmão-senhor, e hoje são uma sociedade de casais divorciados, compelidos a conviver com filhos de outros casamentos.

Sociedades de base aristocrática são sistemas desiguais e interdependentes, feitos de senhores e escravos, de ricos e pobres. Nelas, há uma imensa dificuldade em lidar com quem não tem um lugar no sistema: no caso, os descendentes de outros enlaces matrimonias que devem ser tratados como iguais aos outros filhos do casal.

Filhos de pessoas separadas implicitamente denunciam a história conjugal dos pais no contexto do novo amor e enlace matrimonial. O olhar negativo que eventualmente recebem é a prova de uma resistência à autonomia que o mundo moderno tem dado sobretudo às mulheres. Antigamente, o casamento de viúvos com filhos era tolerado.

Enteados, madrasta e padrasto são palavras estranhas ao ideário do núcleo familiar brasileiro, cuja fundação deve ser preferencialmente realizada por pessoas sem história conjugal. Nos vossos dramas a descoberta de um descendente de uma relação passada pode inibir o novo enlace, e ser motivo para o fim de um projeto de casamento.

O ideal era que homem e mulher tivessem filhos dentro de apenas um matrimônio. Se a sociedade (e a casa) era heterogênea, a família deveria ser pura, constituída por gente "sem passado" conforme se diz ainda hoje. Basta ver as novelas. O folclore situa a "madrasta" como uma mulher má e incapaz de afeto. A vida é, muitas vezes, madrasta, diz-se.

Vocês, brasileiros, têm um elo muito forte com a mãe, de quem se espera, além do amor, todos os sacrifícios. Da madrasta, esperam-se maquinações que, como mostra a história de Branca de Neve, visam à destruição da enteada. Como antropólogo você sabe que a família brasileira valoriza os elos de descendência, inibindo os laços de afinidade - o vínculo entre pais e filhos é mais importante do que a relação entre marido e mulher. Mas me parece claro que esses sinais começam a ser trocados e que há uma ênfase nos elos conjugais, como é o caso da sociedade americana.

Se o elo entre um homem e uma mulher, como consortes, é mais básico ou começa a competir com a filiação, há mudança. Significa que a afinidade - essa dimensão que introduz num grupo integrado (feito da mesma "carne" e do mesmo "sangue") um estranho por meio do amor erótico banido pelo incesto - ganha mais latitude.

Se o amor, como parece mostrar a história, deixa de ser algo imposto pela família e passa a ser um assunto individual, a afinidade se fragmenta e pode ser vivida fora dos enquadramentos exemplares e trágicos do folclore das"brancas de neve" - essas meninas sem sete anões, mas com madrastas. Mas como mostra o desenrolar sempre inesperado da vida, nem sempre ocorre, pois o papel ambíguo de "madrasta" como a mulher do pai obrigada, porém, a ser mãe de todos os seus filhos é algo complexo justamente pela possibilidade de ser contaminado pelo ciúme do marido, projetando-o na enteada que entrou no grupo como um hóspede não convidado.

Nesse sentimento contrabandeado para o interior dos laços mais íntimos, estaria a virtualidade de tratamento madrasto e de uma discriminação inconcebível dos enteados dentro da família. Esse grupo que, na sociedade brasileira, deveria ser marcado pela harmonia das velhas e boas hierarquias baseadas em afinidades "naturais".

Essas observações é óbvio não explicam o crime, mas ajudam a compreender a estupefação diante dele. Se o crudelíssimo assassinato tivesse ocorrido na rua ou até mesmo numa escola, seria chocante, terrível, mas, nas atuais circunstâncias de incúria administrativa, explicável.

O fato, porém, de ele ter acontecido no interior de uma família de classe média é algo impensável. E o impensável engendra a revolta que nada mais é que o retorno do recalcado - dos sentimentos mal resolvidos ou ignorados quando casamos inovação com tradição.

Acho notável que no mesmo momento em que vocês vivem o drama de Isabella, o presidente Lula no seu "comício" (a denominação, via recalque ou ato falho, é da chefa da Casa Civil) do PAC tenha reiterado a indicação da ministra como "mãe, tia e avó" do programa. O plano seria moderno, mas a ser implementado por uma mulher que "cuidará" dele como tia, avó e, sobretudo, mãe: matriarcalmente.

Veja a força da tradição familística brasileira! Ninguém, exceto a oposição, que não conhece a linguagem popular, será a madrasta do Brasil. Você pode não gostar, mas o Homem é um craque. Seu governo mostra que fazer política é também dramatizar: abrir-se para as correntes mais profundas do sistema. Pena que do outro lado haja um bando de sujeitos inteligentíssimos, mas incapazes de ver de perto e enxergar de longe.
Take care,

Dick

Roberto Da Matta é antropólogo.