Se alguém conseguir por um momento deixar de lado o horror que o episódio provoca, poderá registrar que o assassinato da menina paulista produziu um trabalho policial de alta e insuspeitada sofisticação.
É fato que o casal acusado conta uma história torta, com buracos notáveis.
Não convenceu a polícia, nem conquistou simpatia quando se defendeu em longa entrevista na TV.
Também é verdade que não há motivo conhecido, nem testemunhas do ato criminoso.
Em compensação, a polícia já reuniu um monte de provas técnicas; domingo, usou até um sofisticado boneco importado para reproduzir a queda da vítima.
Não deu bem para entender para que isso era necessário. Afinal, recriou-se apenas o momento do fato: amarrado a uma corda, o boneco caiu uns poucos metros. Mas, pelo visto, era tudo que se precisava — para demonstrar o quê, não ficou muito claro — e foi evitado um momento traumático para a platéia.
Para a opinião pública, o show de sofisticação talvez fosse até desnecessário. O monte de indícios e detalhes que abrem buracos consideráveis na versão dos acusados há muito tempo já produziu o veredicto da opinião pública.
A dupla está declarada culpada de um dos mais repugnantes crimes que se conhecem: o infanticídio. É raro tanta certeza brotar em tão pouco tempo. Num caso em que não há motivo conhecido, denúncia ou testemunhas, nunca ouvi falar.
Pouco importa: a unânime indignação da sociedade é reação salutar.
Vamos ver se ela se manterá forte quando o caso chegar a julgamento. Para a opinião pública, será um teste principalmente de paciência: nossos tribunais não são tão eficientes nem tão rápidos quanto a polícia paulista mostrou ser nesse episódio.
Em São Paulo mesmo, há a famosa história do jornalista que matou a namorada com um tiro pelas costas, na frente de testemunhas. Isso foi há mais de dez anos — e ele continua em liberdade, sem qualquer previsão de que um dia conhecerá uma cela por dentro. Não é caso raro.
Enfim, quando terminar o trabalho da polícia e começar a jornada nos tribunais, a marcha da Justiça trocará a sofisticação dos equipamentos importados pela máquina enferrujada dos tribunais. Neles, por culpa das leis e não dos homens, réus primários — pouco importa a gravidade dos crimes cometidos — conseguem adiar a sentença por anos e anos. Uma vez condenados, bastando serem primários, não passam na cadeia mais do que um sexto das penas recebidas.
E a liberdade condicional tem muito mais de liberdade do que de condicional. Não é culpa de ninguém; o sistema é assim. Ironicamente, tem até seu lado, digamos, aparentemente democrático.
Ou seja, a porta rotativa da penitenciária funciona tão bem para homicidas da classe média alta como para traficantes de humildes sobrenomes.
Até agora, a reação da máquina do Estado ao crime infame em São Paulo tem sido gratificante para os cidadãos horrorizados. É pena que ninguém consiga ficar indignado por muito tempo.