domingo, março 30, 2008

FERREIRA GULLAR Uma questão teológica


Pode-se admitir que, numa célula, menor que uma cabeça de alfinete, já esteja um ser humano?

VOU METER minha colher torta num assunto complicado: o problema das células-tronco embrionárias, cuja utilização para fins médicos é contestado pela Igreja Católica. Como se sabe, a Lei de Biodiversidade -que libera o uso daquelas células pelos cientistas, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente Lula- foi considerada inconstitucional pela Procuradoria Geral da República e está em julgamento no Supremo Tribunal Federal.
A alegação da procuradoria é que a Lei de Biodiversidade fere dispositivo constitucional, que garante a preservação da vida humana. Então, estabeleceu-se a seguinte discussão: pode-se admitir que, numa célula, menor que uma cabeça de alfinete, já esteja o indivíduo humano, detentor do direito constitucional? A Igreja diz que sim, alegando que a vida começa com a fecundação do óvulo, enquanto os cientistas afirmam que o indivíduo só começa de fato quando se formam o cérebro e o sistema nervoso. A verdade é que, se se pode afirmar que a vida humana começa com a fecundação, pode-se também admitir que começa antes, no espermatozóide e no óvulo, uma vez que os elementos que constituirão o feto já estão neles. É uma discussão sem fim.
Mas os defensores da utilização científica de células-tronco embrionárias levantam um argumento a que a Igreja responde com dificuldade: por que defender a preservação de um embrião, alegando que já está ali em potencial o indivíduo humano, mesmo sabendo que, com isso, prejudicará um vasto número de pessoas, cujas graves doenças poderiam ser curadas graças àqueles procedimentos científicos? Quando o STF iniciou o julgamento da ação de inconstitucionalidade, estavam ali presentes muitas pessoas inválidas em cadeiras de rodas. Como ignorar o sofrimento delas em nome de uma simples tese?
A resposta a essa pergunta é a seguinte: a Igreja não tem alternativa, porque o que está em jogo é seu dogma fundamental, a crença do pecado original, que levou Santo Agostinho à seguinte reflexão: se a criança, ao nascer, já traz consigo o pecado original, deve-se concluir que o ato sexual engendra, não apenas o corpo, mas a alma também, pois o pecado é da alma.. Daí a tese de que o ser humano começa com a fecundação, pois a presença da alma no embrião independe de já haver ou não, ali, cérebro e sistema nervoso. O que está presente, nele, desde o primeiro momento, é a alma. Não se trata, portanto, de uma questão biológica, mas teológica.
Os defensores da posição católica repelem qualquer aproximação da atitude atual da Igreja com a que adotara durante a Inquisição. De fato, não há hoje a menor possibilidade de algum ímpio ser levado à fogueira, nem a Igreja pensa nisso. A semelhança entre os dois casos está na prevalência do dogma sobre qualquer outro valor: livrar a alma do pecado, que, no passado, justificou a tortura e o sacrifício do pecador, hoje justificaria a proibição das pesquisas com células-tronco embrionárias, quaisquer que sejam as conseqüências para a vida de tanta gente, pois o que importa é salvar a alma que, como supôs Santo Agostinho, já estaria no embrião. Essa foi a explicação que ele encontrou para justificar a tese de que já nascemos infectados pelo pecado.
A noção do pecado original é tão essencial à Igreja que Jesus teve que ser concebido por mãe virgem, fecundada pelo Espírito Santo. Mas, como a condenação do ato sexual levava a um impasse, pois a proibição do coito determinaria o fim da espécie humana, a saída foi abençoá-lo pelo casamento e eliminar o pecado pelo batismo. E se o bebê morre, ao nascer, sem ser batizado, queimará eternamente no fogo do inferno? É duro de aceitar.
É essa mesma visão dogmática do sexo que leva a Igreja, hoje, a proibir o uso da camisinha: o ato sexual só se justificaria quando praticado com o objetivo de procriar e, como o uso da camisinha, impedindo a fecundação, implica a prática do sexo por mero prazer, leva ao pecado e à perdição da alma. Logo, transar com camisinha não é permitido, ainda que disso resulte a morte de milhões de pessoas pela Aids. Tem lógica! Mas isso não nos fará ignorar o extraordinário trabalho da Igreja, dando amparo e sentido à vida de muitos milhões de pessoas também.
Sucede que, no caso das células-tronco, a fecundação é feita num tubo de ensaio, excluindo, portanto, a relação sexual, que engendraria a alma e o pecado original. Logo, para Santo Agostinho, na célula-tronco embrionária, fecundada sem pecado, não estaria a alma. Tem lógica também.