O Estado de S. Paulo |
27/3/2008 |
Apesar do aparentemente invejável crescimento econômico de 8% ao ano, os argentinos não estão bem. Com apenas 100 dias de governo, a presidente Cristina Kirchner enfrenta forte locaute dos produtores agrícolas, que entra no 15º dia, e panelaços diante da Casa Rosada (sede do governo). No modelo clássico, locaute é um movimento de patrões que paralisa a produção para enfrentar uma ação reivindicatória de trabalhadores. Mas, na América Latina, eles muitas vezes se fazem para desestabilizar governos. O mais famoso aconteceu no Chile em 1972, quando a paralisação dos caminhoneiros provocou séria crise de abastecimento e apressou a queda de Allende. O locaute argentino tem lá suas conotações políticas, mas o maior objetivo é econômico. É tentar derrubar ou afrouxar o Imposto sobre Exportações (retenciones) que o governo aplica sobre alimentos e petróleo. A ação ataca pilares da política econômica e conta com apoio das classes médias, cujo poder aquisitivo está sendo dilapidado pela inflação. Para entender o que se passa, convém ter em conta que o forte crescimento econômico argentino, que tanto fez os brasileiros invejarem a galinha do vizinho, se baseou em dois fatores: (1) na ocupação da enorme capacidade ociosa da indústria, cuja produção foi derrubada pela recessão de 2001 e 2002, e que se seguiu ao naufrágio da conversibilidade do peso ao dólar; e (2) na expansão dos gastos públicos, que, só no ano passado, foi de cerca de 50%, segundo calcula o ex-ministro da Economia do governo De La Rúa Ricardo López Murphy. Para evitar a valorização do peso que se seguiu à alta das commodities, o governo adotou o câmbio fixo. Aconteça o que acontecer, cada dólar compra cerca de 3,17 pesos. Para garantir a relação cambial, o governo impôs as tais retenciones sobre exportações. (Veja o Entenda.) Uma das conseqüências é a disparada da inflação, que ninguém sabe a quantas anda porque o governo manipula deslavadamente as estatísticas. Os números oficiais apontam alta de apenas 7,5% ao ano. Mas cálculos independentes indicam que a inflação está entre 18% e 24%. Para evitar reajustes de preços e salários, o governo recorre ao controle de preços e aos acordos, arrancados de empresários e sindicatos com um misto de distribuição de favores e ameaças de retaliação. São negociações com baixo nível de transparência. Outra conseqüência é o raquitismo dos investimentos, pois ninguém quer entrar num negócio que não dá retorno. E há a perspectiva de apagão energético, também por falta de investimentos. No mercado financeiro, é inevitável o descontentamento dos aplicadores em títulos do governo cujo rendimento está amarrado à inflação. Se recebem apenas pela inflação oficial, perdem patrimônio. Outro resultado desse arranjo é o desabastecimento que atinge produtos básicos como carne, laticínios e azeite. Até agora, o governo conseguiu convencer os produtores de que estava compensando com um câmbio mais favorável o que perdiam nos preços. Essa conversa já não cola mais e os produtores partiram para o boicote. Arranjos assim tendem a desembocar em becos sem saída. Nada indica que desta vez vai ser diferente.
A taxação das exportações (retenciones) imposta pelo governo argentino incide sobre todas as exportações. Mas sobrecarrega muito mais as de alimentos (carne, soja, milho, trigo). No ano passado, as receitas com essa taxação corresponderam a 10% do total arrecadado, ou 17 bilhões de pesos argentinos (US$ 5,4 bilhões). Com o dinheiro arrecadado, o governo: (1) compra dólares no câmbio interno para impedir a desvalorização do peso; e (2) obriga o produtor a vender no mercado interno a preços equivalentes aos obtidos no externo expurgados do imposto. |