sexta-feira, fevereiro 22, 2008

O (inexistente) gás boliviano

editorial
O Estado de S. Paulo
22/2/2008

Os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva, Evo Morales e Cristina Kirchner reúnem-se neste sábado na residência oficial de Olivos, em Buenos Aires, para discutir maneiras de superar a crise de energia que afeta Brasil, Bolívia e Argentina. Se depender dos governos da Bolívia e da Argentina, o problema tem solução fácil: basta o Brasil abrir mão de parte do suprimento de gás natural que recebe da estatal boliviana. Isso já foi feito antes. No ano passado, por exemplo, em nome da solidariedade entre os países do Mercosul e para não deixar em má situação o companheiro Evo Morales, o presidente Lula determinou à Petrobrás que aceitasse uma redução da quantidade do gás fornecido pela Bolívia, para que a Argentina fosse atendida. Além disso, o Brasil aumentou o fornecimento de energia elétrica para Buenos Aires.

Mas agora a situação é outra. Aumentou o consumo industrial e doméstico de gás e, apesar das chuvas, os reservatórios das hidrelétricas não estão em seus níveis ideais. O Operador Nacional do Sistema estima que, para que haja um mínimo de segurança energética, será preciso manter em operação as usinas térmicas durante todo o ano - na melhor das hipóteses, até outubro. Por isso, afirma o presidente da Petrobrás, José Sérgio Gabrielli, “não podemos abrir mão de uma molécula de gás para o mercado interno, que está no limite”. Também o porta-voz da Presidência da República ressaltou que será exigido o cumprimento do contrato de fornecimento, pois “nossas necessidades internas vêm em primeiro lugar”.

Na semana passada, o vice-presidente da Bolívia, Álvaro Garcia Linera, visitou o presidente Lula, em Brasília, e sugeriu que o governo brasileiro autorizasse a Petrobrás a fazer uma redução voluntária da demanda de gás importado durante o inverno. Com isso, se a Bolívia decidir aumentar o fornecimento à Argentina, estaria livre do pagamento de multas por descumprimento de contrato. E é claro que a Bolívia prefere vender para a Argentina, a US$ 7 por milhão de BTU, do que para a Petrobrás, a US$ 5,60. A reivindicação boliviana não foi atendida.

Critica-se o governo brasileiro por não ter feito a tempo os investimentos que evitariam uma crise energética. Os governos populistas de Evo Morales e Néstor Kirchner fizeram coisa pior.

Na Argentina, uma política de congelamento dos preços e tarifas de insumos energéticos levou a uma escassez sem precedentes. Sem novos investimentos, o país, que era exportador de petróleo e gás, hoje passa por um apagão crônico, por falta de combustível para suas usinas térmicas. O presidente Kirchner imaginou sair da crise assinando grandes contratos de fornecimento de gás com a Bolívia e de petróleo com a Venezuela. Mas o gás boliviano não existe. E os argentinos agora se dão conta de que o coronel Hugo Chávez fez um negócio da China. A Argentina tem pago uma conta de cerca de US$ 1 bilhão por ano, há dois anos, à Venezuela. Mas em 2006 só entrou no país o equivalente a US$ 25 milhões em petróleo venezuelano e, até outubro de 2007, US$ 19 milhões. Isso significa que a PDVSA ganhou gordas comissões, intermediando petróleo produzido na Rússia, Letônia, Geórgia e Brasil.

A Bolívia, por sua vez, vendeu o que não tem. Tem contratos firmes de fornecimento de 30 milhões de metros cúbicos de gás para a Petrobrás, 2,2 milhões para a usina térmica de Cuiabá, 7,7 milhões para a Argentina e ainda precisa atender ao mercado interno, que consome pelo menos 6 milhões de metros cúbicos. Como produz apenas 42 milhões de m³ diários, a conta não fecha. É por isso que vem fornecendo apenas 1,1 milhão de m³ para Cuiabá e de 2,5 milhões a 3 milhões de m³ para a Argentina. Em 2010, terá de fornecer à Argentina 27,7 milhões de m³ diários - e desde o ano passado se sabe que os investimentos que estão sendo feitos não serão suficientes para uma produção que lhe permita honrar os contratos de venda.

O Brasil está desenvolvendo um tardio programa de redução da dependência daquele país. A Petrobrás aumentou substancialmente os investimentos em produção própria e, ainda este ano, começará a importar gás liquefeito de países mais confiáveis que a Bolívia. Mas não pode prescindir, como disse seu presidente, “de uma molécula” do gás boliviano, que responde por cerca de metade do consumo nacional.