DAVOS. O verdadeiro “descolamento” que existe entre a economia brasileira e a crise americana é de percepção. O conceito que o governo tem de si mesmo e de suas ações é muito melhor do que o que o mundo econômico reunido aqui no Fórum Econômico Mundial tem da atualidade brasileira, embora todos reconheçam que estamos bem mais sólidos do que anos antes. Mas nossa irrelevância atual para o mercado internacional está explicitada nos comentários apenas marginais sobre nossa economia. No ano passado escrevi uma coluna que tinha o título de (B)rics, diante da absoluta desimportância do Brasil nos debates, e este ano a situação se repete, talvez amplificada pela concentração das preocupações com a crise financeira dos Estados Unidos.
O Brasil certamente superou a fase em que alguns analistas sugeriram tirar o B da sigla que reúne Brasil, Rússia, Índia e China, países que, segundo estudo do Goldman Sachs, serão os líderes do futuro. Mas, crescendo abaixo ou igual à média mundial, ainda somos um ponto neutro na economia globalizada, com alguns picos de excelência.
A mesma coisa acontece com a América Latina como um todo: apenas dois painéis foram dedicados à região, e a maioria dos empresários e representantes de governos está satisfeita de a região não ser, como em anos anteriores, a nota negativa do encontro.
Nos últimos cinco anos, aproveitando o crescimento mundial, a América Latina tem experimentado um forte crescimento econômico, o que possibilitou a chegada de alguns milhões de cidadãos ao mercado de consumo, mudando de patamar na escala social.
Essa mobilidade social ascendente na região foi festejada num jantar que reuniu a comunidade ibero-americana aqui em Davos, porque durante muitos anos ela existiu, mas em sentido decrescente, fenômeno registrado recentemente na Argentina, por exemplo, quando muitos da classe média foram desalojados com a quebradeira do país.
Mas a consistência desse movimento ascensional também foi bastante questionada, pois, com exceção do Chile, todos os demais países da região não apresentam mudanças estruturais que garantam a sustentabilidade dessa melhoria.
O Chile, ao contrário, tem uma classe média que domina cerca de 70% do espectro social, o que demonstra um sólido posicionamento. O tema central da noite do jantar ibero-americano era justamente o crescimento da classe média latino-americana, e a definição do que seja classe média dominou as discussões.
O padrão mais aceito é o acesso ao consumo, e desse ponto de vista há indicações claras de que a América Latina está crescendo de importância em mercados como computadores e telefones celulares, por exemplo, mas também em setores mais supérfluos, como o de cosméticos.
Nesse campo, o Brasil já seria o terceiro maior mercado do mundo, depois dos Estados Unidos e da França.
Segundo análise consensual, a região tirou vantagem do crescimento mundial para fortalecer os fundamentos macroeconômicos, como equilíbrio fiscal, balança comercial e controle da inflação.
Esses mecanismos, juntamente com programas sociais assistencialistas para as camadas mais pobres, fortemente implantados em países como o Brasil, a Venezuela e o México, ajudaram a melhorar o poder de compra dos cidadãos, fazendo crescer a classe média, pelo menos estatisticamente.
Certamente a América Latina está entre as regiões que mais contribuíram para a demanda em ascensão por alimentos, o que, segundo o diretorgeral da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), Jacques Diouf, é uma das explicações para a alta dos preços internacionais.
Mas, e os chamados valores intangíveis, tais como confiança nas instituições como Justiça, polícia, políticos, que formam a base da classe média como cidadãos formadores de opinião, capazes de fazer valer seus direitos e de reivindicar avanços dos governos? Houve um consenso de que, desse ponto de vista, as classes médias latino-americanas não são tão grandes assim como parecem quando medidas apenas por estatísticas ou classificadas por critérios consumistas.
Também com relação aos valores reais de cidadania, a falta de serviços públicos eficientes, as dificuldades para a assistência médica, a insegurança, tanto na visão policial quanto na existencial, a percepção generalizada de que a corrupção grassa sem controle, todos esses elementos comuns aos países latino-americanos foram registrados como exemplos de que ainda faltam muitas mudanças estruturais para que os países da região possam se considerar bem posicionados no mundo globalizado — onde as ambições não apenas consumistas, mas pelos direitos da cidadania, são crescentes pelo contágio de informações sobre as demais sociedades.
A atual crise financeira internacional, se por um lado parece que inexoravelmente afetará de uma maneira ou de outra os países de maneira generalizada, poderia ser também um momento político adequado para que os governos latino-americanos retomassem a agenda de reformas estruturais que, em muitos países, como o Brasil, por exemplo, foram deixadas de lado nos últimos anos — como a infra-estrutura para melhorar nossas condições de competir no mercado internacional, a modernização tecnológica, a reforma das leis trabalhistas, a redução da carga tributária para incentivar o empreendedorismo.
Mas, sobretudo, somente uma verdadeira uma revolução no sistema educacional poderia fazer com que as conquistas sociais registradas nos últimos anos na região não sofressem um revés já acontecido em outras ocasiões.