sexta-feira, dezembro 28, 2007

Retrospectiva 2007 | Internacional

Cadê o "sim" que estava aqui?
Juan Barreto/AFP

Hugo Chávez perdeu a pose populista duas vezes em 2007. Por meio da indignação do rei Juan Carlos da Espanha, levou o inesquecível cala boca. Pela reação heróica do povo venezuelano, amargou a vitória do "não" no plebiscito que lhe daria quantos mandatos quisesse. Nas duas ocasiões, Chávez ficou tão desconcertado que interrompeu, ainda que brevemente, a torrente de barbaridades verbais com que tortura seu país e o mundo. A oposição venezuelana renasceu de fontes inesperadas: um movimento universitário liderado por um estudante que tem o improvável nome de Stalin González, um general que até o meio do ano era ministro da Defesa e muitos chavistas que, mesmo iludidos pela lábia populista, não quiseram dar um cheque em branco ao homem que chamou de "verdadeiros traidores" os que pensavam em votar "não". Em 2006, Chávez foi reeleito presidente com 7,3 milhões de votos. No plebiscito de dezembro, o "sim", derrotado, obteve 4,4 milhões.

Chávez tem os meios e a disposição para conseguir seus fins – o poder absoluto –, mas a vitória do "não" foi um facho de luz num ano pouco auspicioso para as instituições democráticas. Entre os percalços, a perpetuação da dinastia Kirchner na Argentina e a da autocracia Putin na Rússia são alguns exemplos, retratados nas excepcionais fotos a seguir.

Bom de boca

AFP

Na bocarra feita para arrancar pedaços inteiros, não para mastigar, o crocodilo-do-nilo tem de 64 a 68 dentes. No dia 11 de abril, o veterinário Chen Po-yu sentiu a força dessa máquina de estraçalhar. Funcionário do zoológico da cidade de Kaohsiung, na Ilha de Taiwan, ele estava tratando do crocodilo quando aconteceu o ataque. Depois de atirar dardos com tranqüilizantes para adormecer o bicho, Chen enfiou o braço pela grade do compartimento com lago onde ficam os répteis para recuperar o instrumento com o anestésico. Nada adormecido, o crocodilo arrancou-lhe o braço na altura do cotovelo. O veterinário foi salvo pelas reações rápidas dos colegas: um fez um torniquete no braço mutilado; outro atirou no crocodilo, que largou a presa. Em operação de emergência, o braço foi costurado de volta. Salvaram-se ambos, veterinário e crocodilo. As duas balas de revólver não causaram nenhum dano visível à couraça do bicho. Provavelmente ele tenha largado o braço em razão do impacto, como pode ser conferido no vídeo do YouTube, que correu mundo junto com a inacreditável foto aqui mostrada. Chen pretendia fazer um exame no crocodilo porque ele estava doentinho e não comia havia uma semana.

O agente provocador

Jason Reed/Reuters

"Trabalhar mais para ganhar mais." Foi com essa proposta revolucionária que Nicolas Sarkozy chegou à Presidência da França. O adjetivo não é metafórico. Uma das forças motrizes da Revolução Francesa foi a idéia de acabar com os privilégios conferidos pela origem social e implantar a meritocracia: as pessoas devem ser julgadas pelo que fazem, e não pela casta à qual pertencem. Em nenhum lugar da Declaração Universal dos Direitos Humanos aparece a garantia de emprego eterno – e com mínimo esforço – ou de aposentadoria integral aos 50 anos, mas com o tempo... Bem, a maioria dos franceses percebeu que o país precisa de mudanças e elegeu o agente aparentemente ideal para elas. Num país em que até a direita (leia-se Jacques Chirac) era de esquerda quando se tratava de amar os privilégios trabalhistas e odiar tudo o que viesse dos Estados Unidos, Sarkozy injetou uma espetacular dose de novidade. Os adversários o tacharam de "o americano", como se fosse xingamento, e depois de eleito, fiel ao temperamento provocador, ele foi passar férias nos Estados Unidos (na foto, aparece com os presidentes Bush, pai e filho, e a matriarca Barbara). Até agora, o hiperativo presidente francês já sobreviveu a um divórcio (a bela Cécilia o deixou), a uma temporada de greves e a outra de quebra-quebra no subúrbio. "Eu não vou parar. Vou acelerar", prometeu. "Um dia vocês dirão que fui um reformista da estatura de Margaret Thatcher." Que tal isso como provocação?

Fazendo amigos no inferno

AFP

Na primeira metade de 2007, o Iraque foi, mais do que nunca, uma sucursal do inferno. Os atentados suicidas aumentaram tanto que, a cada nova carnificina, a reação internacional parecia se resumir a duas palavras – mais um. A matança entre xiitas e sunitas criou dilemas como o mostrado nesta foto, em que dois funcionários de necrotério tentam combinar as quatro cabeças aos seis corpos encontrados num subúrbio da cidade de Baquba.

O número de iraquianos mortos nas lutas sectárias atingiu o ápice de cerca de 3 000 em fevereiro – sem incluir soldados e policiais nem os militares americanos. A partir de junho, a diminuição na violência começou a se delinear. Em dezembro, a média estava abaixo de 500. O fator determinante foi a nova e realista política americana pela qual uma campanha militar mais bem conduzida se soma a alianças com os chefes tribais iraquianos – a força dos clãs ainda é grande no país. Quantidades significativas de dinheiro trocam de mãos para azeitar as novas amizades: os líderes levam sua parte, os liderados ganham um salário mensal, em média de 400 dólares, para matar terroristas da Al Qaeda em lugar de americanos. Dinheiro bem empregado. Um general americano calculou em 17 milhões de dólares o custo da arregimentação de 67 000 milicianos em Bagdá – "Menos que o preço de um helicóptero Apache".

Ele está de olho em tudo

Dmity Astakhov/AFP

O que dar de presente a um autocrata que já tem tudo? Um terceiro mandato, claro. Sem querer seguir o caminho chavista da mudança na Constituição, Vladimir Putin fez uma simulação de alternância no poder: vai deixar a Presidência da Rússia e virar primeiro-ministro. Para o esquema dar certo, ele precisa colocar um aliado em seu lugar (o escolhido é Dimitri Medvedev, de 42 anos) e o aliado precisa ganhar a eleição de março próximo (sem problemas).

A imbatível popularidade desse ex-agente da KGB que tudo controla se deve à estabilidade, à recuperação econômica e ao sentimento de orgulho nacional restaurado. Ao todo, os deputados eleitos em dezembro que seguem a linha Putin chegam ao nível quase soviético de 87%. Embora a vitória do presidente estivesse garantida, o teor de intervenções eleitorais suspeitas foi alto. Há alguma coisa de muito errado quando um político frauda eleições que iria ganhar de qualquer maneira. É possível que o tenha feito para intimidar aliados, mantendo a tradição das violentas disputas internas no Kremlin, que Winston Churchill certa vez comparou a uma briga de buldogues debaixo do tapete. Putin foi eleito Homem do Ano pela revista Time, com reprodução de uma piadinha. Putin sonha com Stalin e lhe pede ajuda para governar a Rússia. "Fuzile todos os democratas e pinte o Kremlin de azul", diz o fantasma. "Por que azul?", pergunta Putin. "Rará, eu sabia que você não ia me perguntar sobre a primeira parte."

Adeus, grandes irmãos

Brent Stirton/Getty Images

É possível que não os nossos netos, mas nós mesmos não mais vejamos no futuro próximo sequer cenas de cortar o coração como essa da retirada do gorila morto num parque nacional do Congo. Tudo o que é humano conspira contra nossos primos-irmãos, os grandes primatas – gorilas, orangotangos, chimpanzés e bonobos. O desmatamento acaba com os lugares onde vivem, sua carne é cobiçada nos mercados clandestinos e, no caso do Congo, habitat dos majestosos gorilas-das-montanhas, uma guerra infernal não poupa ninguém. Membros dos grupos armados locais e de países vizinhos, que praticam massacres e estupros em massa contra a população, às vezes também se divertem atirando nos gorilas. Nessas condições, não é de estranhar que os guardas do parque de Virunga, onde vive metade dos cerca de 700 gorilas-da-montanha ainda existentes, sejam altamente expostos à corrupção ou à infiltração de madeireiros. A extinção dos grandes primatas está se acelerando como nunca, e talvez eles só sejam encontrados em zoológicos dentro de cinqüenta anos. Ou menos. O desalento dos especialistas é resumido numa frase: "O relógio está a um minuto da meia-noite para os grandes primatas".

Pescoço a salvo, por enquanto

Irna/Rreuters

As notícias que vieram do Irã durante 2007 foram, como sempre, ruins. O presidente Mahmoud Ahmadinejad continua dizendo abominações e as patrulhas religiosas continuam obcecadas em controlar cada mecha de cabelo que escapa do lenço obrigatório usado pelas mulheres na rua. Até as calças Capri e os casacos justos foram mencionados como estritamente proibidos. As que se pintam ou se enfeitam demais podem ser humilhadas e presas por "prostituição". As execuções públicas ofereceram o usual espetáculo tétrico, com condenados sendo puxados na forca por guindastes. Um homem acusado de adultério foi morto pelo bíblico e bárbaro método da lapidação, ou apedrejamento. Pelas leis religiosas, antes das pedradas os homens são enterrados até a cintura com as mãos para trás; as mulheres, até o pescoço.

A única notícia boa sobre o Irã veio do lugar mais inesperado possível: dos Estados Unidos, sob a forma de um relatório conjunto dos organismos de inteligência do país. Segundo a análise, o Irã interrompeu seu programa nuclear clandestino desde 2003. Com o pescoço temporariamente afastado da corda que viria sob a forma de um hipotético, mas não impossível, ataque americano para ceifar uma futura bomba nuclear, Ahmadinejad comemorou a "grande vitória" representada pelo relatório. Ou seja, o presidente do Irã agora gosta da CIA!

No tempo das cavernas

Reuters

A imagem é fantasmagórica, mas o resultado é bom: as crianças tendo aula numa caverna retratam o monumental esforço da China para educar sua população em todos os níveis. Nenhum outro país emergente avança tão celeremente nesse requisito vital para o desenvolvimento e a cidadania. Nos últimos dez anos, a taxa de analfabetismo chinesa caiu de 22% para 4%, a população universitária multiplicou-se por sete e o número de cientistas dobrou. No mesmo período, o Brasil ficou para trás. Pense numa estatística, e os chineses estarão invariavelmente na dianteira. Na taxa de repetência, indicador clássico da qualidade do ensino, a China beira o zero, enquanto o Brasil pena com 20%. No outro extremo, o do ensino de ponta, a China tem 40% mais Ph.Ds. e produz dezesseis vezes mais patentes. Nas avaliações internacionais feitas em 2007, o Brasil apareceu, como sempre, em colocações vergonhosamente baixas. Numa comparação entre 57 países, os estudantes brasileiros ocuparam o 52º lugar em ciências. Os alunos deixam a escola sem dominar a leitura e sem saber distinguir os órgãos do corpo humano. Ignoram que a Terra gira em torno do Sol. Isso, sim, remete ao tempo das cavernas.

Cristina e o choque de realidade

Geraldo Caso/AFP

Até agora, somente os fatos empanaram o brilho de Cristina Kirchner. Militante política, advogada bem-sucedida, deputada e senadora durante a maior parte de seus 54 anos, ela só chegou a presidente da Argentina via laços conjugais. A transferência de prestígio operada por Néstor Kirchner produziu um resultado eleitoral notável e um problema institucional insolúvel: a sensação de que a Presidência argentina virou herança transmitida em família. Cristina fez uma campanha voltada a passar uma imagem de menor imprevisibilidade e maior jogo de cintura internacional que seu marido. O choque de realidade foi devastador. Dois dias depois da posse da presidente, a Justiça da Flórida divulgou os resultados de sua investigação sobre o "caso dos dólares venezuelanos". Através de conversas gravadas, ficaram demonstrados a origem e os propósitos dos 790 550 dólares apreendidos em agosto com um empresário venezuelano que viajou a Buenos Aires em comitiva oficial. A mala de dinheiro vinha do governo Chávez e se destinava à campanha de Cristina. A nova presidente reagiu com ataques aos Estados Unidos. A realidade desagradável persiste: os dólares, o emissário (pressionado em Miami a assumir a responsabilidade sozinho, daí o caso) e um processo como só promotores americanos sabem fazer. Nada que se possa chamar de um bom começo de governo.

O mistério da Praia da Luz

Rui Vieira/AFP

Duas perguntas assombraram o mundo desde maio passado. A primeira: o que aconteceu com Madeleine McCann, a menininha inglesa desaparecida em Portugal? A segunda, e tão ou mais terrível: será que os pais mataram a própria filha e simularam tudo? Maddie sumiu do apartamento de temporada na Praia da Luz onde a família passava férias. Faltavam nove dias para a menina completar 4 anos. Gerry McCann, cardiologista, e a mulher, Kate, clínica-geral, estavam jantando com amigos num restaurante do condomínio. O que parecia um caso de negligência obscurecido pela tragédia – deixar a menina mais o casal de gêmeos dormindo sozinhos – virou um cipoal de suspeitas. Em meio a investigações policiais pateticamente mal conduzidas e a uma guerra da imprensa popular da Grã-Bretanha (a favor dos McCann) e de Portugal (contra), multiplicaram-se os julgamentos baseados predominantemente em impressões. O casal parece distante demais, controlado demais. Kate é loira, bonita, magra e fria. Em vez de chorar, eles fizeram uma campanha mundial para procurar a menina e levantar fundos. Arrecadaram mais de 2 milhões de dólares. Usaram parte do dinheiro para pagar as prestações da casa. Foram indiciados pela polícia portuguesa (uma tese pavorosa: Kate errou na dose ao dopar as crianças). Os exames de DNA mostraram-se até agora inconclusivos. Onde está Madeleine?

A última foto

Adress Latif/Reuters

Caído no chão, o fotógrafo japonês Kenji Nagai tenta erguer o braço segurando seu bem mais precioso – a câmera. Acabou de levar um tiro do jovem soldado de chinelos. A bala perfurou seu coração e ele morrerá pouco depois. Morto, matador e manifestantes ao fundo protagonizaram sem saber uma cena impressionante, um flagrante perfeito da violência em Mianmar, a antiga Birmânia, um dos países mais fechados e repressivos do mundo.

Os protestos de setembro foram liderados por monges budistas, que, de repente, começaram a sair dos mosteiros e a tomar as ruas, num mar de mantos vermelhos. E como há monges em Mianmar. Segundo a tradição budista do Sudeste Asiático, pelo menos um filho de cada família tem de passar um período no mosteiro, numa espécie de serviço religioso voluntário e espiritualmente vantajoso.

Os que não voltam para a vida mundana sobem na hierarquia e exercem grande autoridade moral: todos, inclusive os militares, fazem de tudo para diminuir o ciclo de reencarnações que acreditam ser o fardo da humanidade. Entre monges de cabeça raspada e uma ditadura militar chefiada por generais sombrios e caquéticos, as simpatias evidentemente ficaram do lado dos primeiros. Sem resultados. Os monges voltaram para os mosteiros e os generais ganharam mais uma. Ficou para a posteridade a foto em que Nagai estava do lado errado da câmera e do fuzil. Mas o carma ruim é todo da outra parte.

O bebê que não deveria viver

Reuters

A pequena Amillia não poderia viver e, se o fizesse, só poderia ter seqüelas graves. Quando nasceu, na Flórida, tinha 21 semanas e seis dias de gestação. Pesava pouco mais de 250 gramas e media 24 centímetros – menos do que esta página de VEJA. Seus pezinhos eram do tamanho de um clipe de papel. As fotos da minúscula criatura só foram divulgadas em fevereiro, quando ela saiu do hospital onde passou quatro meses, já na condição firmada de o bebê mais prematuro do mundo a sobreviver. Seu bravo coraçãozinho havia driblado problemas respiratórios e digestivos gravíssimos, além de uma hemorragia cerebral. Em outubro, ela comemorou 1 ano, com 8 quilos, 70 centímetros e saúde inacreditável para quem tinha todos os prognósticos contra. Por meio de Amillia e da equipe médica que cuidou dela, espelham-se algumas das mais notáveis características humanas: a dedicação à ciência e às suas aplicações, o impulso de sobrepujar limites, a recusa em aceitar o que parece inevitável.

A mãe de Amillia, Sonja Taylor, que havia feito inseminação artificial para engravidar, já voltou a trabalhar como professora primária. O acompanhamento médico intensivo da menina deu lugar a exames mensais. As experiências mais radicais de Amillia no momento são com o andador.