quarta-feira, dezembro 26, 2007

Quem usa fantasia depois do carnaval?

José Nêumanne



Parece até milagre de Frei Galvão: após ter usado uma retórica desaforada e agressiva para garantir a aprovação da prorrogação da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) por um Senado no qual não dispõe dos três quintos necessários de votos para emendar a Constituição, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva chegou a dizer, sensatamente, que aquele imposto não importa tanto, principalmente quando posto em confronto com a estabilidade. Do outro lado do guichê, a oposição também baixou o tom do confronto verbal, aproximando-se mais da confraternização do Dia da Paz Universal, a ser festejado na semana que vem, e se distanciando anos-luz do tom acerbo que seu principal líder, o senador Arthur Virgílio (PSDB-AM), empregou para desacatar um venerando varão da casa, Pedro Simon (PMDB-RS), que, aos 48 minutos do segundo tempo, aderiu de maneira surpreendente às pretensões prorrogacionistas do governo.

O discurso pró-estabilidade do chefe desse mesmo governo é positivo, necessário e profilático. Pois, sempre que repetido, ele afasta da realidade das contas públicas os espantalhos desenvolvimentistas de uma patota que o cerca e não resiste à velha tentação de abrir as burras, ainda que isso implique um "pouquinho" a mais de inflação. Lula não atingiu os 65% de prestígio popular medidos na última pesquisa de opinião pública à toa ou por acaso. Esse feito espetacular, a ponto de desafiar o axioma do malogro inexorável no segundo mandato, é fruto de talento e bom senso. Quando ele brigou pela prorrogação da CPMF, deveria contar com a sobra de caixa que os recordes de arrecadação produzirão em 2008, mas sabia que os R$ 40 bilhões não eram tão essenciais assim. Só que também não eram - nem são - desprezíveis para ele nem para ninguém. Se era para incrementar o Bolsa-Família ou pôr fim ao caos na saúde, irrigar o sertão ou os cofres das campanhas dos aliados nas campanhas municipais, pouco importa: há sempre algo de bom e útil a ser feito com sobras de caixa. Sua Excelência, contudo, nunca perdeu de vista o que a vida lhe ensinou: os programas sociais podem lhe dar votos e força, mas o fim da estabilidade levaria seu cacife de votos à breca.

A defesa intransigente do patrimônio político herdado de seus adversários tucanos - o controle da inflação, que corroía o salário do operário, reduzia o consumo da classe média e só favorecia os ricos - não resulta de convicções ideológicas, mas de mero pragmatismo. As provas de juízo, que o presidente tem dado na manutenção da política econômica traçada pelo chefe de sua campanha e depois seu ministro da Fazenda, Antonio Palocci, contrariando velhas palavras de ordem do partido dos dois, o PT, devem ser celebradas. Mas não podem ser vistas como um salvo-conduto genérico que garanta ao País um lugar nos vagões da frente do trem da prosperidade econômica mundial. Não devemos esquecer que o mesmo homem que se agarra com unhas e dentes aos princípios do rigor fiscal defende publicamente o conceito absurdo de que boa gestão faz quem aumenta despesas para pagar mais pessoal, e não quem demite para poupar.

Por isso, talvez seja precipitado festejar com idêntica efusividade as reiteradas notícias de que o governo federal não criará novos impostos nem aumentará alíquotas, mas cortará os próprios gastos. Lida ao fluir da pena, esta frase pode soar contraditória por ter sido escrita por quem sempre reclamou dos excessos cometidos não só por este, mas por todos os governos, na alocação de verbas do Orçamento. Mas convém ter presente que o fundamental não é apenas cortar, pois é preciso saber cortar. O corte linear das despesas da União, anunciado pelo líder do governo no Senado, Romero Jucá (PMDB-RR), é imprudente e fatalmente será desastroso. Reduzir os recursos encaminhados para a saúde, setor ao qual estaria destinada a arrecadação que o Senado obstruiu, por exemplo, será uma atitude criminosa de um governo que continua acenando com miçangas milionárias, tais como a TV pública e as obras da transposição do Rio São Francisco. Deixar de construir escolas e aumentar salários de professores para bancar a produção caríssima de uma programação cuja audiência não existirá será uma demonstração de falta de critério na escolha de prioridades. Não tapar os buracos nas estradas nem construir esgotos, mas, ao invés disso, irrigar as terras dos latifundiários nordestinos, em nome da sede dos sertanejos, alimentando a indústria da seca, a pretexto de exterminá-la, manterá o País em déficit social crônico.

Parágrafo à parte merece a reforma tributária. A oposição, que rosnou contra a deserção de Simon, ouve, embevecida, o festival de cantigas da sereia das promessas vazias de um debate sério e realista sobre a demolição consensual da estrutura arcaica e onerosa da cobrança de impostos no País. Ora, se todos concordam que urge modificar o sistema de arrecadação de tributos, pois ele representa um dos mais importantes motivos da pífia participação do Brasil no cada vez mais próspero mercado das nações livres, por que não se consegue fazê-lo? Pelo simples motivo de que todos são a favor de mudar, mas ninguém é capaz de ceder, quando se trata de construir um sistema novo, mais simples, mais justo e, sobretudo, menos oneroso para a sociedade que sua, trabalha, produz e consome. Nada mudou desde a derrubada da CPMF, por mais histórica que esta tenha sido, que autorize a previsão panglossiana de que será possível chegar ao encontro de convergências capazes de contornar os interesses que se contrariam e digladiam numa guerra que não tem fim à vista.

Fantasias são próprias para o carnaval, mas ninguém de posse das faculdades mentais as veste depois da Quarta-Feira de Cinzas.

José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde