segunda-feira, dezembro 24, 2007

Os Luízes

DENIS LERRER ROSENFIELD

Um é o representante-mor da elite sindical, tendo galgado o posto de Presidente da República, depois de renunciar a algumas das bandeiras que arvorava quando líder da oposição. O outro, imbuído de uma profunda espiritualidade, representa a ala mais à esquerda da Igreja católica, verbalizando as posições da Teologia da Libertação e das Pastorais, em particular, a CPT (Comissão Pastoral da Terra) e a Cimi (Comissão Missionária Indigenista).

Um passou a atuar como governante, invocando as razões de Estado, a propósito de uma decisão que lhe é própria de transposição do rio São Francisco, o outro considera o mesmo rio um dom de Deus, expressão de Sua vontade.

Dois universos muito distintos enfrentaram-se nesta luta, que se apresentou como uma luta de vida e morte, com um dos contendores entregandose totalmente a um desenlace que poderia ter sido fatal. Dois universos que são extremamente representativos dos dilemas e impasses da sociedade brasileira e, muito particularmente, das condições que propiciaram o PT chegar ao Poder.

Num passado recente, os dois Luízes não expressavam oposições tão antagônicas, mas comungavam dos mesmos princípios ou, pelo menos, aparentavam fazê-lo. O representante das elites sindicais venceu as eleições com o apoio do outro Luiz, o dos auto-intitulados movimentos sociais, do MST e das Pastorais, como se todos estivessem, enfim, a caminho da redenção.

Dom Luiz, o do São Francisco, identifica a sua causa "terrena", a de um rio, a um dogma cristão.

É como se, para ele, o dogma da eucaristia, relativo à presença do Cristo, tivesse o mesmo valor do da presença de Deus na disposição atual daquele rio. Em linguagem dos Cantos da Comissão Pastoral da Terra, trata-se da Mãe-Terra que estaria sendo violada. Ele identifica o seu profundo despojamento à luta dos ditos movimentos sociais, como se o seu exemplo moral fosse o dos mártires da Igreja. Engana-se quem procura pensálo sob a ótica de um ato de suicídio. Na representação que tem de si, essa categoria não se aplica, pois ele se vê como cumprindo uma missão de fundo religioso. Exige do Estado que se curve diante dele, como se coubesse à Igreja ditar o que deve ser feito.

Dom Luiz, o dos sindicatos, está identificado com suas funções de governante. Sabe que não pode se curvar diante de tal postura religiosa, sob pena de renunciar ao seu próprio governo. O Estado não pode ficar a reboque da Igreja. Na sua perspectiva, a transposição do rio São Francisco é tecnicamente perfeita, tendo seguido todos os trâmites ambientais, orçamentários e jurídicos para a sua realização. O Luiz que se tornou presidente não está somente preocupado com a seca sob a ótica da auto-subsistência dessas populações. De fato, ele está, enquanto governante, preocupado com o crescimento econômico e o desenvolvimento social dessas regiões, através de emprego, renda e salários, o que passa pelo apoio ao agronegócio e às empresas hidrelétricas. O outro Luiz, ao vislumbrar isto, sente tremores, pois seus dogmas teológico-políticos se vêem abalados. Será que se distanciaram tanto? O nome Luiz passou a nomear universos tão diferentes, depois de terem sido a expressão do mesmo? A luta entre ambos tornou-se uma luta de vida e morte, onde poderia haver um só vencedor. Um, ao pôr sua vida física em questão, sabia que a sua morte implicaria numa outra, a morte simbólica do seu contendor. Em sua morte física, sobreviveria nas mentes e nos corações de seus seguidores e discípulos. Tornar-se-ia o novo mártir dos "movimentos sociais", da "nova Igreja". O outro, em sua vida governamental, morreria simbolicamente para os mesmos "movimentos sociais" e para os seus militantes que, até recentemente, o consideravam como um ídolo, um "companheiro".

Assumiu, porém o risco de sua morte simbólica.

O outro Luiz terminou recuando diante da morte.

Hegel, na Fenomenologia do Espírito, escrevia que o senhor é aquele que vence a luta de vida e morte, o escravo, aquele que recua com medo da morte. Não há nenhuma consideração de ordem social, moral ou oriunda da tradição, mas apenas o modo de encarar a morte numa relação de enfrentamento.

Os ditos movimentos sociais também recuaram, como se temessem a morte simbólica de Lula. Tiveram medo de um desenlace que os isolaria em relação a um governo que, por outros meios, tanto os apóia. Dom Luiz, Lula, soube se tornar senhor.