ROBERTO DaMATTA
Entre presentes e entre os presentes, damos o nosso testemunho pessimista, desconfiado, positivo, sofrido, esperançoso e — mesmo quando mentimos (pois o tempo transforma mentiras em verdades) — sincero do mundo e da vida.
Entre os presentes dados e recebidos, concretizamos laços, relacionamentos, ligações, tramas e cumplicidades que, durante o ano, estavam ocultos pelas rotinas competitivas e apressadas de um trabalho que ainda é castigo exatamente por “não dar tempo!”. A grande maioria trabalha para viver e tentar economizar.
No Natal, no entanto, uma ética de realeza, inaugurada com os Reis Magos, revela a grande estrela que conduz a um menino que veio nos salvar de nós mesmos. O panorama marcado pela reversão tudo diz: os Reis Magos visitam o menino nascido num estábulo; a aristocracia visível presenteia uma divindade escondida.
Exatamente como fazemos quando, como pais, compramos o presente “muito caro” para os filhinhos amados; ou buscamos o melhor vinho para o amigo dileto. Entre os presentes dos magos estava o brilho do ouro, representando o mais puro poder material; a gratuidade aromática do incenso que, como tudo, se esfuma pela glória de quem amamos e tomamos como superior (ou “caro”); e o gosto amargo da mirra que fala de nossa condição sofrida como seres dotados do poder de dar a vida e, no entanto, destinados à mor te.
O Natal, que é também o fim de mais um ano, liga-se à nossa ânsia de inventariar pessoas, coisas e mundos.
Típico dos rituais de passagem coletivos, o rito de calendário de que é feito o Natal celebra o tempo e, assim, nos situa entretempos.
Ora, esse espaço inter e intratemporal leva ao empenho de descobrir erros, acertos, bons e maus momentos de um ano que, como uma pagina de livro, teria passado. Com isso, fazemos os triviais balanços de pessoas e fatos que o ano que passou teria partejado.
Pois, para o nosso lado moderno e individualista, o tempo é como uma coisa ou norma: pode ser economizado, comprado, dado, assassinado e desperdiçado; ele também causa e produz fatos e coisas. Por isso, esse estilo de conceber a duração determina rotinas dizendo quando temos que acordar, dormir, tomar remédio, rezar, comer, ir para a escola, trabalhar e tudo o mais.
Mas, se durante o ano somos esmagados pelo “estou com pressa”, “tenho que ir ao dentista”, “vamos acabar com isso logo”, “seu prazo termina amanhã”, “cumpri uma pena de 20 anos”, “ficarei por mais de mil anos no Purgatório”, “acho que vou perder o avião”, “ganho o emprego em 30 dias” etc...
Agora o foco muda para o laço e para quem conosco agüenta todo esse corre-corre centrado em nossos seres como cidadãos, contribuintes, eleitores e trabalhadores...
Entre presentes, exprimimos o carinho que detém o tempo e engendra o gozo das minúcias. A meticulosidade dos rituais eróticos, marcados pelo “devagar se vai ao longe” e que exige a repetição vagarosa (logo consciente e ritualizada) dos carinhos, diz bem dessa manipulação benfazeja e necessária — antiga e poderosa — do presente como centro da história e como parte de uma etapa contraditória, pois um lado nosso quer que o tempo passe, mas um outro deseja que fique.
Presentes entre os presentes, damos e recebemos presentes que reacendem os dons do amor e da solidariedade.
O livro, a flor, o vinho, o doce, o brinquedo, o frasco de perfume e o laço de fita, a camisola ou a calcinha acetinada, o sonhado computador que vai abrir o mundo, a almejada geladeira, televisão ou máquina fotográfica, tem como centro invisível a estrela dos Magos: ver a felicidade esculpir o rosto do recebedor diante da oferenda.
Entre os presentes, quem vale mais? O presente ou o rosto iluminado do presenteado ao abrir avidamente o pacote do presente, rasgando às pressas o seu papel brilhante ou cortando metodicamente com tesoura o invólucro, para ver e tocar o dom contido na caixa-sacrário para exclamar, olhando nos nossos olhos, aquele maravilhoso: “Obrigado... isso era o que eu mais queria” que nada tem a ver com a coisa, mas com o laço que ela é.
Aprendemos com maior ou menor dramaticidade que as pessoas passam, mas os elos entre as pessoas ficam.
Como é possível que eles permaneçam numa temporalidade humana perecível, móvel, sempre instável e em permanente construção? Afinal de contas: seria possível pensar que são as pontes que inventam as margens e, até mesmo, os rios e os abismos? Para os engenheiros não. Mas para quem está entre os presentes sim.
Para os presentes, a morte mata, mas os mortos não morrem. Pois é esse impulso que reconhece a morte, mas não se contenta com ela, que nos trás presentes. No presente-presença dos netinhos pelo filho morto; dos irmãos pelos pais e tios que se foram; dos amigos por todos os irmãos de sofrimento que não podemos humanamente conhecer, mas que os nossos presentes alcançam quando promovem o impulso do reconhecimento do outro não apenas como um adversário, estranho ou inimigo, mas como um construtor de nossa humanidade.
É por causa disso que estamos hoje, caro leitor, entre tantos presentes. Feliz Natal.