sábado, novembro 24, 2007

VEJA Entrevista: Saulo Ramos


Jabuticabas jurídicas

Um dos mais destacados juristas brasileiros critica
a confusão legal do país e alerta contra a possibilidade
de os acusados do mensalão saírem impunes


Jerônimo Teixeira


Roberto Setton

"A legislação brasileira parece feita só para inocentes. Os constituintes olharam para o passado. Fizeram vários artigos para proteger os presos das masmorras da ditadura"

"A minha vida é a advocacia", diz Saulo Ramos. Aos 78 anos, esse paulista de Brodowski – cidade do pintor Candido Portinari, seu amigo – participou de momentos cruciais da vida pública brasileira. Foi oficial-de-gabinete do governo de Jânio Quadros e defendeu políticos e intelectuais de esquerda nos processos abertos pela ditadura militar. No governo Sarney, serviu como consultor-geral da República e ministro da Justiça. Também foi advogado – vitorioso – do Senado no processo que garantiu a cassação dos direitos políticos de Fernando Collor de Mello, que renunciara antes do impeachment na esperança de conservar a elegibilidade. As saborosas histórias dessa longa carreira jurídica estão reunidas em Código da Vida (Planeta), livro de memórias que já teve 50 000 exemplares comercializados e está há 23 semanas na lista de mais vendidos de VEJA. Recentemente recuperado de um câncer, Ramos segue ativo, mas afastado dos tribunais e fóruns – chega a cobrar 200 000 reais por um parecer jurídico. Na entrevista a seguir, concedida em sua casa de campo em Serra Negra, São Paulo, Ramos mostra por que é uma das mentes jurídicas mais aguçadas do país.

Veja – A Constituição brasileira está para fazer vinte anos. Ela serviu bem ao Brasil neste tempo?
Ramos – Na essência, sim. Ela assegurou o estado de direito, com forte concreção dos direitos fundamentais, das liberdades individuais e públicas. Foi mais abrangente do que as constituições anteriores em muitos aspectos importantes, no processo legislativo, na criação da Advocacia-Geral da União, nas cláusulas pétreas. Mas não deixou de ser um desastre no sistema tributário. Criou condições para os entes federativos instituírem tributos de todos os tipos. Provocou outro desastre, e maior, no sistema financeiro, que acabou sendo revogado, inclusive naquela teratológica fixação de juros reais em texto constitucional. Exigiu um número excessivo de leis ordinárias – 285 – e complementares – 41 – para dar eficácia aos seus comandos e até hoje ainda depende de interpretações do Supremo Tribunal Federal.

Veja – A sociedade não acaba prejudicada por esses excessos legislativos?
Ramos – Nosso país sofre contradições enormes em matéria de leis. Há algumas excelentes, outras medíocres, discriminatórias e mal redigidas. Somente em matéria de leis tributárias tivemos, a partir de 1988, a edição de 225.600 normas federais, estaduais e municipais, isto é, 36 normas tributárias por dia, o que enlouquece contribuintes e advogados. No processo legislativo, passamos ao abuso deslavado de legislar por medidas provisórias em quase todas as matérias, sem urgência e sem relevância, como exige a Constituição. O processo legislativo tem sido violentamente deturpado, e isso desfigura a democracia, pois o Congresso não legisla corretamente, o Judiciário não tem instrumentos científicos para aplicar o direito, o povo não sente legitimidade nem segurança na ordem jurídica.

Veja – Julgamentos recentes do Supremo Tribunal Federal, como o da fidelidade partidária, levantaram críticas de que o Poder Judiciário estaria interferindo indevidamente no legislativo. Isso procede?
Ramos – Não é verdade. O Congresso Nacional parou de trabalhar. O que o Supremo tem feito é suprir as falhas do Congresso, interpretando o conjunto das normas constitucionais. Se o Supremo deduziu que o mandato do político eleito pertence ao partido, é porque esse é o sistema previsto na Constituição. O Supremo também chegou à conclusão de que o funcionário público, para fazer greve, precisa de uma lei que a regule. Como o Congresso nunca editou essa lei, aplicou-se supletivamente a lei que rege o direito de greve dos trabalhadores privados. Outro exemplo possível: a Constituição, nos direitos individuais, diz que ninguém pode ser compelido a fazer parte de uma associação. Nos direitos sociais, diz que ninguém pode ser obrigado a filiar-se a sindicato. Se esses dois comandos constitucionais não obrigam ninguém a se filiar a sindicato, então não pode haver cobrança obrigatória de contribuição sindical. Se amanhã alguém chegar ao Supremo, pelas vias processuais que a nossa lei admite, e argüir essa matéria, ele acaba com a contribuição, sem necessidade de lei.

Veja – A denúncia do mensalão foi quase integralmente aceita pelo STF. Mas Fernando Collor de Mello, mesmo cassado no Congresso, acabou inocentado por razões técnicas no Supremo. Não há o risco de que o mesmo se repita agora?
Ramos – A denúncia contra Collor era inepta. Atribuía a PC Farias o crime de concussão, do qual Collor seria co-autor. PC Farias jamais poderia ser denunciado por concussão porque não era funcionário público. Esse defeito técnico livrou o autor do crime, e portanto também o co-autor. A denúncia do mensalão, ao contrário, está muito bem embasada. Aponta os fatos praticados por cada um dos réus, com motivos e circunstâncias. Claro que o STF está no início, apenas. O direito de defesa assegurado pela Constituição será exercido pelas pessoas arroladas na denúncia. Mas ficou demonstrado ao país que houve o mensalão. E foi praticado com a permissão clara do governo. A história de Lula dizer que não sabe nada é uma agressão à inteligência dos brasileiros.

Veja – Não há risco de os crimes dos mensaleiros prescreverem por causa da demora do julgamento?
Ramos –
A demora é um problema para a Justiça brasileira em geral. Quando o cliente é culpado, a saída, para o advogado, é pedir provas, diligências, precatórios, ouvir uma testemunha no Rio Grande do Sul e outra no Acre, para ganhar tempo até a prescrição. No caso do mensalão, a prescrição é o maior risco. O Supremo não tem estrutura para fazer instrução probatória, ainda mais com tantos réus. E não existe apenas a prescrição técnica, jurídica: com a demora do julgamento, a opinião pública também esquece do caso, e fica mais fácil para a defesa trabalhar.

Veja – A ineficiência e a demora da Justiça são as principais causas da impunidade?
Ramos –
O problema é que a legislação brasileira parece feita só para inocentes. Os constituintes olharam para o passado, não para o futuro: fizeram vários artigos para defender os presos políticos das masmorras da ditadura. Por exemplo, tem um artigo que diz que ninguém é considerado culpado enquanto não transitar em julgado a sentença condenatória. O jornalista Pimenta Neves é um exemplo: embora seja réu confesso e já tenha sido condenado em primeira instância por assassinato, está em liberdade. Então, a culpa não é exclusiva do Judiciário. O juiz não pode julgar contra a lei.

Veja – Como se corrigem esses problemas?
Ramos – É preciso alterar a legislação toda, tanto na Constituição quanto nas leis infraconstitucionais. Primeiro, tem de mudar esse conceito da Constituição de que o sujeito é inocente até trânsito em julgado. Depois, na legislação penal, tem de estabelecer que condenado em primeira instância deve começar a cumprir a pena. Não pode apelar em liberdade.

Veja – O presidente Lula teve a oportunidade de nomear sete dos onze ministros do STF. Ele fez boas indicações?
Ramos – Na maioria, sim. Há uma minoria, uns dois ou três, que é intelectualmente mais fraca.

Veja – Quem são eles?
Ramos – É constrangedor citar nomes. Mas é só acompanhar os julgamentos do Supremo para ver quem é a minoria. Ficam brincando com o laptop. São culturalmente mais fracos.

Veja – O senhor já foi advogado do ex-deputado Ronaldo Cunha Lima, que agora renunciou para não ser julgado pelo STF. Essa foi uma manobra legítima?
Ramos – Casos como esse são jabuticabas jurídicas: só existem no Brasil. Fui advogado de Ronaldo Cunha Lima quando começou o processo. Consegui que ele fosse solto com um pedido de habeas corpus – o primeiro no Brasil feito por fax. Depois, ele prosseguiu o processo com outros advogados. A renúncia ao mandato teria de sustar o processo contra ele no Supremo, porque ele deixava de ter foro privilegiado. O ministro Joaquim Barbosa, sem a necessária serenidade de magistrado, entendeu tratar-se de um desaforo. É isso mesmo: desaforamento da ação penal. É um legítimo direito de defesa do réu. Não acredito que o Supremo prosseguirá no julgamento de um cidadão comum, não mais deputado.

Veja – Nas suas memórias, o senhor conta que foi convidado a ser ministro da Justiça e advogado do governo Collor, com pagamento de honorários. Como foi isso?
Ramos – Foi quando começaram a pipocar os escândalos com PC Farias. Um alto membro do governo, meu conhecido, me convidou, em nome do presidente, para ser ministro da Justiça, pagando honorários de 10 milhões de dólares. Já me censuraram por não ter revelado isso na época. Ora, advogado não sai por aí gritando "fui consultado por fulano ou sicrano". Resolvi contar agora no meu livro porque é um fato único na história do Brasil. Um ministro da Justiça é um auxiliar do presidente da República. Ele pode assessorar como advogado em casos pessoais do presidente da República? Ele é auxiliar para tudo? São perguntas que eu mesmo me fiz então.

Veja – E um ministro pode agir como advogado?
Ramos – A minha resposta é negativa, tanto que não aceitei o convite do Collor.

Veja – Mas o ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos concebeu as teses jurídicas para defender o governo Lula no caso do mensalão.
Ramos – Ele agiu como advogado, e não posso censurar um colega meu, sobretudo quando é bom advogado. Márcio criou a tese do caixa dois, que melhorou um pouco o julgamento popular sobre o governo. Também criou a tese do "Lula não sabia de nada". É sempre melhor não saber nada do que dar explicação. Agora, há um gesto simbólico do Márcio que pouca gente entendeu. Ele saiu do governo. É um gesto silencioso, mas muito significativo da discordância.

Veja – O senhor é muito crítico da atuação de Fernando Henrique Cardoso durante a Constituinte. Por quê?
Ramos – Fernando Henrique queria implantar o parlamentarismo em um momento em que não era legítimo sob o ponto de vista do direito. O povo já tinha decidido, no plebiscito de 1963, que o sistema era presidencialista. Isso só poderia ser mudado, segundo toda a técnica do direito constitucional, através de outro plebiscito. Para aprovar o parlamentarismo na Assembléia Constituinte, Fernando Henrique criou uma Comissão de Sistematização com poderes especiais. Para derrubar o que a comissão aprovava por maioria de 47 votos, eram necessários 280 votos do plenário. Os constituintes da comissão eram de primeira classe, e os do plenário, de segunda. Eu denunciei isso. Mostramos que era uma fraude.

Veja – Como presidente, Fernando Henrique não andou sempre dentro dos marcos institucionais?
Ramos – Sim, andou. Mas ele, por exemplo, era a favor do tabelamento de juros pela Constituição. Ele e o Fernando Gasparian lutaram muito para botar o limite de 12% de juros na Constituição. Isso ia quebrar o país, com aquela inflação galopante. Eu dei um parecer, na Consultoria-Geral da República, de que aquele artigo precisava de lei para ter eficácia. Fernando Henrique veio brigar comigo. "Você pensa que suspende a Constituição com parecer jurídico?" Não só pensava, como suspendi. O Supremo pensou igual a mim e manteve a suspensão. Na Presidência, quem mais praticou juros altos foi o Fernando Henrique. Ele tem essas posições dúbias. Como ele é inteligente, digo que isso é perigoso.

Veja – O senhor também qualificaria Lula como perigoso?
Ramos – O perigo do Lula é a tendência permanente à demagogia de palanque. E o risco está no demagogo se endeusar, achar que pode tudo. É o caso do Hugo Chávez, na Venezuela.

Veja – Se Lula tentar, consegue aprovar uma emenda constitucional para obter um terceiro mandato?
Ramos – Eu acredito que nesse ponto a sociedade vai reagir. A meninada vai pintar a cara de verde e amarelo de novo. Seria o fim do estado de direito no Brasil.

Veja – O senhor foi ministro da Justiça no governo de José Sarney e é até hoje muito próximo dele. O que pensa ao vê-lo na base de sustentação do governo Lula?
Ramos – Sarney prestou ao Brasil um serviço de grande relevância quando assumiu a Presidência da República como vice de Tancredo Neves. Os militares não se conformavam com a vitória do Tancredo e queriam botar os tanques na rua de novo. Sarney e Leônidas Pires Gonçalves, o ministro do Exército nomeado por Tancredo, souberam conduzir isso com muita habilidade. Sarney deveria ter parado no momento de glória. Mas ele continuou na política, e a política tem dessas coisas. A campanha que ele faz para o Senado, no Amapá, é no mato, nos mangues, regiões inóspitas. Ele toma cachaça em botequim e anda de canoa em rios e igarapés. Para quem está acostumado com isso, não custa nada entrar na canoa furada que é o governo Lula.

Veja – O senhor atuou, em 1979, na proibição de O Rei e Eu, livro em que Nichollas Mariano, mordomo de Roberto Carlos, fazia revelações sobre a intimidade do cantor. A recente proibição de Roberto Carlos em Detalhes, biografia de Paulo Cesar de Araújo, é um caso comparável?
Ramos – Os dois casos são muito diferentes. No tempo de O Rei e Eu, estávamos sob a Constituição de 1967, que não era tão liberal quanto a atual. E o livro do mordomo não tem um caso que seja verdade. Era tudo mentira. Foi uma briga judicial grande para apreender e queimar o livro antes de ele sair. Já o livro mais recente é uma biografia perfeita. Não tem um ataque moral contra o Roberto. O Roberto me consultou e eu o aconselhei a não tomar nenhuma providência. Eu recusei a causa, e ele procurou outros advogados. Agora, não houve, nesse caso, condenação, mas um acordo. A Planeta, que é a minha editora, capitulou diante do desejo do Roberto.