sexta-feira, novembro 02, 2007

Precisamos Falar sobre o Kevin, de Lionel Shriver

Dúvidas radicais

A história de um imigrante muçulmano
que oscila entre o amor e o ódio à América


Rinaldo Gama

Arif Ali/AFP
Manifestantes islâmicos em Lahore, no Paquistão: idéias extremadas

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Trecho do livro

Do começo do verão americano de 2000 até meados de 2001, o escritor paquistanês Mohsin Hamid redigiu aquele que seria o primeiro dos sete rascunhos de seu segundo romance. A obra colocava em cena um conterrâneo, com uma promissora carreira numa empresa de Nova York, dividido entre converter-se definitivamente ao modo de vida americano e a saudade da terra natal – isso em meio à paixão por uma garota de Manhattan. O manuscrito original não sobreviveu: com o atentado às torres gêmeas, em 11 de setembro, o autor concluiu que, se o mundo não seria mais o mesmo, não haveria de ser o seu romance que permaneceria intacto. Quase seis anos e centenas de laudas depois do ataque terrorista sofrido pelos Estados Unidos, Hamid pôs o ponto final em O Fundamentalista Relutante (tradução de Vera Ribeiro; Objetiva/Alfaguara; 176 páginas; 29,90 reais), um retrato das desconfianças, ambigüidades e radicalismos que passaram a tomar conta das relações entre as potências ocidentais e o mundo muçulmano. Traduzido em dezesseis idiomas, o livro consagrou o autor num tema que já mobilizou nomes do porte dos americanos John Updike (Terrorista) e Don Delillo (Homem em Queda).

O atentado ratifica em Changez, o protagonista de O Fundamentalista Relutante, a sensação de que sua existência é movida por forças que lhe escapam do controle. O episódio transforma o que era um contido desconforto de imigrante em antiamericanismo explícito. A despeito de seu ótimo entrosamento com os colegas de trabalho e de um evidente orgulho do emprego, Changez não consegue evitar um sorriso e a idéia de que finalmente alguém pusera os Estados Unidos de joelhos. "Por mais desprezível que isto soe, minha reação inicial foi ficar extraordinariamente satisfeito", confessa ele, num café em Lahore, no Paquistão, a um desconhecido americano a quem relata sua trajetória recente.

O livro, aliás, se constrói em cima dessa que, para o leitor, não chega a ser nunca uma conversa. O que se lê é um monólogo de Changez, que não só fala de si como também registra as reações do estranho. "Estou lhe contando uma história, e na história é a força da narrativa que importa, e não a exatidão dos detalhes", observa Changez. O texto, no entanto, não cumpre à risca essa plataforma. É apenas fluente – longe de ser "uma escrita levada ao extremo", como o saudou o jornal The Washington Post. Há tolices, como a mania do personagem de se referir aos Estados Unidos como AmErica – referência a Erica, o tal amor que o arrebata. Atormentada pela lembrança do namorado morto, a moça é, aliás, a melhor surpresa do livro. Changez também foi moldado com apuro, a partir de traços biográficos do autor. Hamid, porém, faz questão de guardar distância das idéias extremadas do narrador de seu livro. "Em relação à América, escrevo de uma postura simultaneamente crítica e amorosa", comenta, pelo sim, pelo não, o ficcionista.