artigo - Demétrio Magnoli |
O Estado de S. Paulo |
1/11/2007 |
Já era noite. O brilho das estrelas e o suave clarão da lua refletiam-se na neve. O Regimento Pavlovsk, em uniforme de campanha, estava formado à margem do canal. Sua banda tocava a Marselhesa sob a aclamação dos soldados. Os camponeses desfraldaram a bandeira vermelha (...) na qual pouco antes se havia bordado, com letras douradas, a seguinte inscrição: “Viva a união das massas trabalhadoras revolucionárias!” - John Reed, Os Dez Dias que Abalaram o Mundo Não foi principalmente A Internacional, hino socialista, mas A Marselhesa, que acompanhou as jornadas revolucionárias da Rússia de 1917. Quando, há 90 anos, no 7 de novembro (25 de outubro, pelo antigo calendário juliano), os bolcheviques tomaram o poder em Petrogrado, narrou-se o evento como a seqüência inevitável da Revolução Francesa de 1789. A nossa era histórica se afigurava como uma longa transição entre o poder dos homens de “sangue azul” e a sociedade sem Estado ou classes sociais prometida pelos comunistas. Octavio Paz assinalou que a modernidade, insurgindo-se contra a tradição, alçou a idéia de ruptura como seu valor supremo. Sob essa lógica, gerações de iconoclastas instauraram uma nova tradição: a tradição da ruptura. Eis o motivo pelo qual a noção de revolução experimentou, ela própria, uma revolução: a palavra, do latim revolutio, que nomeava a trajetória orbital dos planetas, no seu ciclo de eterno retorno, converteu-se no signo da mudança radical, que cria o novo absoluto a partir das ruínas do velho. A modernidade, definida em 1789, ergueu-se sobre o tenso compromisso entre os princípios da liberdade e da igualdade. A Revolução de Outubro, em nome da igualdade, aboliu completamente a liberdade. Ela não foi moderna e seu arcaísmo se refletiu no culto ao Líder. Karl Marx ofereceu a uma classe, o proletariado, a chave da História. Lenin transferiu-a para um Partido, o veículo da verdade final. Stalin, o czar vermelho, concluiu o movimento, guardando-a em seu próprio bolso. O corpo embalsamado de Lenin repousa, até hoje, num mausoléu de mármore na Praça Vermelha. Intelectuais de esquerda, saudosos dos tempos de glória de Stalin, justificam o “socialismo real” sob o argumento de que o sistema totalitário acelerou a modernização industrial e, no fim, propiciou a vitória na guerra contra o nazismo. Nas sete décadas da URSS, o PIB do país cresceu menos que o dos EUA ou o do Brasil. A crise de fome que acompanhou a coletivização rural soviética só foi superada pelas tragédias incomensuráveis da China maoísta. Uma falsa narrativa da 2.ª Guerra Mundial contamina, persistentemente, manuais de História e livros didáticos escritos pelos órfãos de Outubro. A URSS fez a guerra ao nazismo apenas depois que a aliança com a Alemanha foi rompida, por iniciativa de Hitler. Ela nunca venceria sem o fluxo de abastecimento bélico dos EUA. Marx imaginou o socialismo como uma transição para o comunismo, o “reino de abundância” no qual trabalho e prazer se tornariam faces inextricáveis da plenitude da experiência humana. A URSS flertou com a militarização do trabalho, proibiu a organização sindical independente e ergueu o sistema do Gulag para promover a conquista da Sibéria. Walt Rostow estava certo quando qualificou o socialismo como uma “doença da modernização do capitalismo”. As suas manifestações atuais, especialmente na China, continuam a fascinar uma esquerda que se recusa a aprender com a História. É um equívoco comum traduzir a oposição entre capitalismo e socialismo como uma alternativa entre mercado e Estado. Não existe mercado sem Estado, a não ser na forma primitiva do escambo. Estado sem mercado é o que existiu, e fracassou, na URSS. A abolição do mercado gerou uma desastrosa alocação de investimentos e destruiu os impulsos de criatividade e inovação. A economia soviética ruiu sob o peso de uma imensa massa inútil de cimento, aço e máquinas. O segredo da eficiência do capitalismo está na teia de empresas pequenas e médias que não podem ser replicadas pelo Estado-Leviatã. A esquerda que não entendeu isso procura no capitalismo de Estado um sucedâneo para o socialismo. A liberdade é indivisível. No poder, os bolcheviques esmagaram, primeiro, a liberdade da “burguesia” e, em seguida, a do “proletariado”. A URSS converteu-se numa prisão de seus cidadãos, enquanto os comunistas, no mundo inteiro, proclamavam o caráter “burguês” da democracia. No Ocidente, em contraste, a democracia propiciou o desenvolvimento dos movimentos sociais, que transformaram por dentro o capitalismo. É por isso que, com a universalização dos direitos políticos e sociais, desapareceram tanto o Estado liberal do século 19 como o impulso da revolução socialista. O “socialismo científico” declarou-se proprietário da História e impugnou a crítica, definindo os opositores como inimigos do futuro. Na URSS, os dissidentes foram declarados “loucos” e internados em manicômios, pois a divergência, quando não era traição, tinha de ser doença. As farsas judiciais dos Processos de Moscou, nos anos 1930, tiveram o apoio de quase todos os intelectuais de esquerda no Ocidente, que, mesmo conscientes das falsificações grosseiras, preferiram incorporar-se à marcha inevitável do “exército da História”. Os herdeiros desses intelectuais seguem disponíveis para escrever o elogio de fuzilamentos sumários, se a causa é boa e o ditador, amigo. A utopia comunista percorreu um ciclo completo, encerrado com a queda do Muro de Berlim. Depois daquele evento, os partidos comunistas renegaram o dogma da ditadura do proletariado, extirparam o marxismo-leninismo de seus programas e trocaram seus nomes de batismo, na esperança de reescrever a própria história. Essa operação de linguagem desatualiza a Revolução de Outubro, remetendo-a, de uma vez por todas, para o passado. Outubro, agora, é só um mês no calendário.
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