A denúncia do procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, contra o senador do PSDB e ex-governador de Minas Gerais Eduardo Azeredo, o então ministro de Relações Institucionais, Walfrido dos Mares Guia, do PTB, seu vice à época, e o afamado publicitário Marcos Valério Fernandes, além de 12 outros, é no mínimo tão consistente quanto aquela, também de sua autoria, que levou o Supremo Tribunal Federal (STF) a processar os 40 acusados da "sofisticada organização criminosa" voltada para a perpetuação do petismo no poder. Conquanto se deva respeitar religiosamente o princípio de que todos são inocentes até a eventual condenação transitada em julgado, não pode pairar dúvida sobre a fundamentação objetiva das peças produzidas pela autoridade em ambos os casos. O procurador voltou a demonstrar que a sua competência no exercício da função rivaliza com a sua integridade - e a combinação dessas duas preciosas características é um contraponto à crença, justificadamente disseminada, da impunidade dos políticos.
Os crimes de peculato e lavagem de dinheiro de que Antonio Fernando acusa Azeredo ("um dos principais mentores e principal beneficiário do esquema implantado") e Mares Guia ("concorreu para a engrenagem ilícita") remontam à tentativa do primeiro, afinal frustrada, de se reeleger governador em 1998. Para irrigar a sua campanha e a de outros, a diversos cargos, sustenta a denúncia, desviaram-se criminosamente, com o conhecimento de Azeredo e a "profissional execução" de Marcos Valério, R$ 3,5 milhões de três estatais, a Copasa (do setor de saneamento), a Comig (mineração) e o Bemge (o Banco do Estado). Por meio de suas empresas, o publicitário tomou emprestados R$ 28,5 milhões de três bancos, maquiou a dinheirama, com a expertise que o tornaria uma celebridade, e a repassava à coordenação financeira da campanha, descontada a sua parte, sob o "manto formal" de serviços prestados às citadas estatais. Era a "origem e laboratório" do mensalão.
Significativamente, porém, contrastando com a sua denúncia anterior, em nenhuma passagem do seu texto de quase 90 páginas, entregue na quarta-feira ao Supremo Tribunal Federal, aparece o termo com que em 2005 o então deputado federal Roberto Jefferson rotulou a paga periódica a parlamentares pelo apoio ao governo Lula - e que se tornou o genérico para corrupção política organizada. E não aparece porque o cuidadoso Antonio Fernando concluiu que "as duas situações não são exatamente iguais". O que elas têm em comum, explicou, é "o procedimento que se adotou para fazer o desvio do dinheiro". O que as distingue são "objetivos diferentes" de uma e outra. Na realidade, o imprecisamente chamado mensalão tucano, ou mensalão mineiro, foi aquilo que o presidente Lula disse ser o mensalão propriamente dito, para negá-lo e levar a crer "que o PT só fez o que é feito no Brasil sistematicamente", conforme a sua inesquecível versão, numa entrevista em Paris, em julho de 2005. Ou seja, caixa 2.
A inverdade dessa declaração está no "só". É fato que "recursos não contabilizados", no eufemismo delubiano, entram e saem - antes se pudesse escrever entravam e saíam - costumeiramente das campanhas eleitorais. Procedem de contas clandestinas de empresas sonegadoras, são distribuídos entre os políticos parceiros, e remuneram, também por fora, serviços prestados aos candidatos, não raro o mais oneroso deles, a propaganda. (Recorde-se que, em agosto do mesmo 2005, Duda Mendonça, o marqueteiro de Lula, confessou na CPI dos Correios ter sido pago pelo PT mediante depósitos em contas secretas no exterior.) A agremiação, em suma, não só fez o que execrava nos "partidos burgueses", mas foi além. Os tucanos mineiros não chegaram a tanto - ou pelo menos nunca se disse que, no seu governo, Eduardo Azeredo ganhava votações na Assembléia Legislativa porque sua gente subornava deputados.
Juridicamente, os crimes que o procurador-geral lhes atribui e os que atribuiu ao petismo não são idênticos, pois. Moralmente, no entanto, são todos execráveis - mesmo porque, entre os 40 do mensalão e os 15 do caixa 2, figuram políticos do alto escalão dos outrora supostamente éticos PT e PSDB, a começar dos respectivos ex-presidentes José Dirceu e Eduardo Azeredo