quarta-feira, novembro 28, 2007

Míriam Leitão - Em três dimensões



PANORAMA ECONÔMICO
O Globo
28/11/2007

Foi um longo caminho até chegar ao alto nível de desenvolvimento humano no ranking da ONU. Este é um número síntese, desenvolvido pelo Nobel de Economia Amartya Sen, com uma série de indicadores sociais e econômicos. Antonio Bezerra, 34 anos, motorista de táxi do Rio, nunca viu o ranking da ONU, mas já viu sinais das mudanças brasileiras na última vez que voltou à sua cidade; Croatá, no Ceará.

- No começo dos anos 90, quando saí de Croatá, ninguém falava em educação. Agora está todo mundo indo para a escola e falando em educação. O ônibus passa lá em frente do sítio do meu pai para pegar as crianças - conta Antonio.

Em 1992, o analfabetismo de 10 a 14 anos no Brasil era de 12%. Hoje é de 2%. A diferença é que, naquela época, não se falava tanto no assunto. Não era o escândalo que deveria ser. Naquele momento, a grande briga do Brasil era mesmo contra a inflação.

O governo Lula tem todo o direito de comemorar a chegada ao grupo de países com alto desenvolvimento humano. Alguns avanços foram consolidados e outros dados, de fato, no atual governo. Mas esse processo é longo. A educação, por exemplo, é um esforço que se planta numa década para só colher na outra. O mais importante é que governo nenhum faz sozinho a mudança, ela é coletiva e resultado do esforço de todos: governantes e governados.

O difícil é juntar esta notícia com os ecos ainda da barbárie do Pará. É difícil acreditar que este mesmo país, onde aconteceram tais atrocidades, está agora recebendo da ONU a informação de que, medido, calculado e comparado com outros países, acaba de passar para o grupo dos melhores.

O caso da menor L. é espantosamente emblemático. Uma mulher a prendeu, uma mulher julgou que ela deveria continuar na prisão, num estado governado por uma mulher. Isso ensina a nós, mulheres, que os homens não têm o monopólio das agressões contra as mulheres. Ninguém consegue dizer exatamente o que ela roubou. Mas a delegada e a juíza acharam que era o caso de trancá-la naquela cela. As declarações e omissões são notáveis pelo que elas revelam da falta de entendimento da gravidade do que se passou por lá. Tudo o que os envolvidos disseram ou fizeram, ou deixaram de fazer, mancha o diploma que o Brasil recebeu ontem da ONU.

O empresário José Pessoa de Queiroz Bisneto, que enfrentou um flagrante de trabalho degradante em uma de suas fazendas na semana passada, é conselheiro do Instituto Ethos e assinou o Pacto contra o Trabalho Escravo. Nessa sua usina, foram encontrados 831 indígenas, que trabalhavam em condições subumanas. O que isso tem a ver com uma coluna sobre o IDH? É um sinal de que nem o nosso melhor esforço de certificação está sendo suficiente para mudar certos comportamentos empresariais incompatíveis com o recente progresso do Brasil.

Um país que avançou tanto pode ainda avançar muito mais. O Brasil passou os últimos vinte anos derrubando mortalidade infantil, analfabetismo, evasão escolar, pobreza, extrema pobreza, desigualdade para chegar ao ponto de estar, ainda que no finalzinho da lista, como um país de alto desenvolvimento humano.

Nas últimas décadas, o Brasil mudou muito e em vários aspectos. Um retrato, por exemplo, da transformação demográfica por que o país passou pode ser visto também na família do taxista Antonio Bezerra. Ele tem 19 irmãos, mas só teve um filho.

Foram vários os avanços no Brasil, mas muitos podem se perder. O maior risco, avisou a ONU no seu texto de ontem, é a mudança climática. Ela poderá atingir exatamente os mais pobres, revogando avanços conseguidos em esforços das últimas décadas.

O relatório elegeu, para este ano, o tema da mudança climática. Ele reanalisa os dados do IPCC - o Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática - , divulgados ao longo de 2007, para mostrar como o desafio climático é real, exige ação abrangente e rápida e seus efeitos atingem principalmente os países de menor desenvolvimento humano. O resultado das equações científicas é traduzido em contundentes demonstrações de como as liberdades fundamentais e o bem-estar humano estão ameaçados pelo aquecimento global. A agricultura perde mais nos países mais pobres que dependem mais dela. As secas são mais graves nos países de menor desenvolvimento humano.

A ONU não deixa qualquer margem a dúvidas: no século XXI, o desenvolvimento humano dependerá crucialmente das ações de mitigação da mudança climática e de adaptação às suas conseqüências inevitáveis.

Nesse ponto, a questão climática se entrelaça com as metas do milênio e torna ainda mais aguda a necessidade de que elas sejam realmente cumpridas.

Por tudo isso, vê-se que o Brasil caminhou bastante, atingindo uma boa posição no IDH, mas ainda existem muitos problemas não resolvidos, e alguns desafios que virão pela frente. Para que o Brasil continue melhorando, terá que lutar para que não se repitam situações como a dos indígenas em Mato Grosso do Sul e das mulheres prisioneiras do Pará. Conformar-se com a barbárie não nos levará à civilização, seja qual for o número que estivermos no ranking.

O Índice de Desenvolvimento Humano foi criado num momento em que se entendeu que só o crescimento do PIB não podia ser sinônimo de progresso, de bem-estar. Agora, é preciso ampliar ainda mais este conceito e suas dimensões. O Brasil precisa melhorar a qualidade de vida dos brasileiros, rejeitando exemplos de barbárie e protegendo o meio ambiente para as gerações futuras.