sábado, outubro 27, 2007

RUY CASTRO A voz do morro

RIO DE JANEIRO - Numa semana em que os morros cariocas estiveram no centro dos acontecimentos, convenci-me de que não adianta apelar para a música popular para tentar entendê-los. Poucos cenários foram tão cantados e nenhum tornou mais superados os grandes sambas e canções que se fizeram a seu respeito.
Por exemplo, "Chão de Estrelas", de Sylvio Caldas e Orestes Barbosa. A idéia de que "a porta do barraco era sem trinco/ e a Lua, furando o nosso zinco/ salpicava de estrelas nosso chão" podia ser bonita em 1937. Hoje a Lua não conseguiria furar a laje do barraco, porque este seria um prédio de cinco andares, de propriedade de um tubarão e alugado de alto a baixo.
E a linda "Ave-Maria no Morro", 1943, de Herivelto Martins? Com a tomada do poder na favela pelos evangélicos, dividindo-o com os traficantes, ficou difícil de acreditar que, hoje, "o morro inteiro/ no fim do dia/ reza uma prece/ Ave Maria". Mais fácil é imaginar um pastor diante de uma congregação apinhada, enxotando o demônio de um membro possuído, aos brados, como se Deus fosse surdo.
Zé Kéti, no samba "Acender as Velas", de 1965, descreve a morte de uma criança na favela e observa que "no morro/ não tem automóvel pra subir/ nem telefone pra chamar". Se fosse só por isto, hoje a criança não morreria. O que não falta é automóvel subindo o morro para fins nada nobres, e o número de celulares em qualquer favela carioca compete com o do Leblon.
E, em "Opinião", de 1964, o mesmo Zé Kéti dizia: "Podem me bater/ Podem me prender/ Podem até deixar-me sem comer/ Que eu não mudo de opinião/ Daqui do morro eu não saio, não". Grande samba, mas o querido Zé, que não era bobo, já não morava no morro. Pouco depois, aliás, fui seu vizinho no lendário Solar da Fossa, em Botafogo.