sexta-feira, outubro 26, 2007

O preço que se paga



- Débora Thomé
O Globo
26/10/2007

A regra de que não existe almoço grátis é velha. Mas o mundo, às vezes, parece esquecê-la. Ou melhor, parece fingir que não a conhece em nome, simplesmente, da redução nos custos. Ontem a Mattel, líder mundial em brinquedos, anunciou seu quarto recall de produtos nos últimos seis meses. Os itens com problemas, mais uma vez, eram fabricados na China.

Tentar reduzir custos não é nenhum pecado. Ao contrário: é bom. Isso porque normalmente também significa baixar os preços dos produtos; otimizar os recursos. Porém, é necessário estar sempre muito atento à forma como se dá esse processo. Do contrário, o preço que se paga pode acabar sendo ainda mais alto.

A Mattel não foi a primeira - nem deverá ser a última - a decidir transferir boa parte da sua produção para a China, onde o valor dos salários, a preocupação com o meio ambiente e a fiscalização são infinitamente menores que nos países desenvolvidos. Por mais que a China esteja avançando, é difícil acreditar que, num país onde não existe democracia, onde a imprensa é controlada, seja possível ter um sistema de produção limpo e correto; em vários sentidos.

É justamente neste ponto que entra a parte do almoço grátis. A lógica para as empresas foi simples: fizeram as contas e voilà; era muito mais barato transferir a produção para outros países, com diversas vantagens comparativas, sobretudo no que tange aos custos. Naquele momento, o ônus não parecia ser tão alto. E, de fato, em muitos casos, a relação trouxe inúmeros benefícios. Porém agora começam a pipocar alguns problemas.

Como bem manda a lógica dos globalizados dias atuais, esse movimento de transferência das empresas tem reflexos no mundo todo. A China, claro, é quem mais sente, acumulando taxas de crescimento anuais de mais de 10%. Mas o mundo inteiro vive hoje um momento em que a inflação (ainda que subindo em alguns países) está sob controle, mesmo com o petróleo em patamares nunca dantes vistos. Ontem, ele fechou acima dos US$90. É o mesmo preço - ajustado - a que chegou na segunda crise do petróleo, no fim dos anos 70.

Pois bem, ainda que o petróleo esteja lá nas alturas e o mundo consumindo sem parar, os preços ainda não deram um salto. Em outras épocas, jamais um petróleo tão caro poderia não afetar a economia mundial, fosse com alta nos preços, ou com recessão. Se a inflação não está acontecendo com força, uma boa parcela disso é devido ao barateamento na produção. Um dos fortes componentes para esse quadro, sem dúvida, chama-se China. Hoje o país tem uma população de 1,4 bilhão de habitantes. Mais da metade ainda na zona rural; e uma boa parte está saindo do campo rumo às cidades. Ou seja: mão-de-obra disponível, farta e, portanto, barata. E, para somar também na conta, são empregados com poucos direitos, ou benefícios; que trabalham por jornadas longas e por períodos ininterruptos.

A Mattel é apenas um exemplo de uma empresa que, se quiser continuar existindo, vai precisar rever os seus conceitos. Sem sombra de dúvida, segurança é item imprescindível em um brinquedo, afinal, ele tem crianças como consumidores. A bem da verdade, segurança é um ponto fundamental em vários produtos, mas, no caso de um para o público infantil, essa preocupação aumenta ainda mais. Ontem, ao anunciar seu quarto recall dos últimos seis meses, a Mattel mostrava (com um certo atraso) preocupação e zelo com a segurança dos seus clientes, mas reforçava para eles a seguinte idéia: nossos produtos não são seguros para os seus filhos.

A explicação do site da Mattel era de que eles tinham contratado um fabricante chinês para pintar um dos brinquedos. Esse fabricante, por sua vez, de forma não autorizada, subcontratou o serviço.

Quando acontece pela primeira vez, essa desculpa ainda pode servir um pouco. Contudo, quando se trata do quarto episódio em tão pouco tempo, não vale mais a justificativa de caso isolado, seja para o fornecedor ou para o comprador. Houve - e, pelo visto há - problemas graves em várias pontas. No fabricante terceirizado (e até quarteirizado), que não teve o cuidado de não utilizar produtos químicos nocivos às crianças; e também na Mattel, que não fez a fiscalização necessária. E, nesse caso, está-se falando apenas dos possíveis riscos aos consumidores; não entrando no mérito das sabidas agressões ao meio ambiente que são mais comuns na China do que poderiam ser.

Viver num mundo em que os preços são mais baixos, o que ajuda a popularizar o consumo, é muito bom. Viver num mundo que cresce bastante há algum tempo, também. O problema é que nunca se pode pensar que os dados de preços baixos ou de crescimento valem por si só. A forma como isso se dá é um aspecto fundamental a ser observado. O caso da Mattel é eloqüente. Se essas transformações no modelo de produção não forem feitas de forma cautelosa, os custos, ao invés de cair, podem mesmo é subir.