sábado, outubro 27, 2007

O padre Júlio Lancellotti é investigado

O padre e a moça

Júlio Lancellotti é agora acusado de
pedofilia por ex-funcionária da Casa Vida


Marcelo Carneiro

Danilo Verpa/Folha Imagem
Fabiano Accorsi
Lancellotti: ele deu
86 000 reais ao suposto chantagista. Mas de onde saiu esse dinheiro?
A testemunha: ela diz que viu o padre beijando um menino de 15 anos

Há pouco mais de um mês, ao denunciar à polícia que era vítima de extorsão, o padre Júlio Lancellotti disse que sua intenção era dar fim a uma história que se arrastava desde 2004. Até o momento, porém, a única certeza é que ela ainda está longe de terminar. Depois de formalizar o pedido de ajuda policial, o padre veio a público informar que, sob intimidação, havia dado 56.000 reais a Anderson Batista, jovem agora com 25 anos que conhecera como interno da Febem. O dinheiro foi usado na compra de um jipe de luxo e de um terreno. De acordo com Lancellotti, Anderson ameaçava denunciá-lo de ter abusado de uma criança de 8 anos – o que o padre jura ser mentira, apesar de ter pago, ao longo de três anos, uma bela quantia ao sujeito. A polícia ainda não deteve o acusado de extorsão, que está foragido, mas já está às voltas com outra questão relacionada ao padre. Lancellotti, que não consegue explicar a contento a origem da dinheirama dada a Anderson e se contradiz ao tentar explicar o tipo de amizade que mantinha com o rapaz, passou a enfrentar uma acusação formal de pedofilia. Os policiais que investigam a denúncia de extorsão tomaram o depoimento de uma mulher que trabalhou por quase um ano em uma das ONGs criadas pelo padre. Ela disse ter visto Lancellotti aos beijos com um menino de 15 anos. O testemunho motivou a abertura de um inquérito sobre corrupção de menores, que tem Lancellotti como investigado.

A testemunha diz que o episódio aconteceu em 1999 dentro da Casa Vida, que atende crianças infectadas pelo vírus da aids, em São Paulo. Seu depoimento ocorreu sob a condição de anonimato. Antes, também protegida pelo sigilo, ela já havia concedido uma entrevista à Rede Record. VEJA esteve com a denunciante. A testemunha tem duas décadas de experiência no trato com menores infratores. É formada em enfermagem, trabalhou na Febem e, durante meses, foi cedida por essa instituição à Casa Vida, gerida por Lancellotti. O que ela diz:

• "O menino tinha de 15 para 16 anos e apareceu do nada. O padre não disse de onde ele veio. Lá era uma casa só para crianças com HIV, mas esse menino não tinha HIV. Sei porque eu preparava os coquetéis e ele não tomava coquetel. O padre disse que o menino ia morar na casa porque precisava de uma atenção maior".

• "Numa noite, ouvi o padre e o menino conversando na sala de televisão, no andar de baixo. Quando desci para pegar água, vi os dois se beijando na boca. Eles estavam de pé. O padre envolvia o menino com um braço e lhe fazia carinho no rosto. Não parecia haver coação. Quando vi a cena, subi correndo as escadas. Não sei se eles me viram, mas certamente escutaram o barulho. Após uma semana, o padre nos comunicou que tinha encontrado droga nas coisas do menino e o havia mandado embora. Duas semanas depois, ele me mandou de volta para a Febem".

• "O padre espancava as meninas. Socorri três que haviam sido surradas por ele. As agressões aconteciam sempre de dia, dentro do escritório dele, com a porta fechada. Como eu trabalhava à noite, chegava apenas a tempo de ver as meninas com muitos hematomas. Eu passava pomadas e fazia massagens".

• "Quando havia um evento, as crianças iam antes na sala do padre. Ele dizia como elas deveriam agir na frente das pessoas e falava: 'Não se esqueçam de me chamar de pai'".

A testemunha diz que só contou a uma pessoa – o marido – o que viu na Casa Vida. Ela atribui a três motivos o fato de ter levado oito anos para tornar pública a história do beijo que teria presenciado: "Eu era só uma funcionária e o padre Júlio, uma pessoa influente. É claro que iriam acreditar nele, e não em mim. Também fiquei com medo de morrer. Eu trabalhei nesse meio (a antiga Febem) e sei que poderia sofrer alguma retaliação. Agora, com a história do Anderson, eu me senti mais segura para falar. Espero que outros sintam coragem para fazer o mesmo".

VEJA apresentou esse relato a um policial que teve acesso ao depoimento da testemunha. Ele disse que as informações prestadas na delegacia são as mesmas. Pode ser invenção? Pode. Pode ser verdade? Também pode. Afinal de contas, a testemunha foi à polícia denunciar Lancellotti. Se não for louca, deve saber das conseqüências penais de um falso testemunho. Diante da gravidade da acusação, é preciso que as investigações sejam aprofundadas. Só assim o padre poderá recuperar – ou perder de vez – a sua reputação. Zonas de sombra, nesse caso, são inadmissíveis.

O próprio episódio da extorsão ainda está envolto em muitas brumas. E, em vez de iluminá-lo, Lancellotti tem contribuído para tornar ainda mais confuso o enredo. Uma das questões que necessitam ser esclarecidas é quanto, efetivamente, ele entregou a Anderson. Em seu primeiro depoimento, Lancellotti diz ter dado 56 000 reais. Boa parte dos recursos, de acordo com o padre, foi usada para pagar prestações da compra de uma Mitsubishi Pajero avaliada em 65 000 reais. Na semana passada, quando já tinha sido informado de que a polícia havia pedido cópia dos documentos da compra do carro à concessionária, Lancellotti voltou à delegacia para dizer que havia se esquecido de um detalhe: também dera outros 30 000 reais a Anderson, a título de entrada para a aquisição do veículo. É difícil acreditar que uma pessoa com poucas posses – o padre declarou ter rendimentos mensais de pouco mais de 3.000 reais – não tenha se lembrado logo de um gasto tão vultoso. Outro dado a esclarecer, repita-se, é a fonte do dinheiro. Em entrevistas, o padre disse que conseguiu parte dos recursos por meio de "empréstimos com amigos". Em seu segundo depoimento à polícia, deu uma nova versão. Tudo teria origem em "recursos próprios, provindos de suas economias durante 35 anos". Uma vez que as ONGs na esfera de influência do padre recebem recursos públicos – só com a prefeitura de São Paulo, os convênios chegam a quase 11 milhões de reais anuais –, é fundamental esclarecer se parte desse montante foi usada nos pagamentos a Anderson.

Uma coisa é certa: o amigo do padre, agora denunciado por extorsão, ganhava o dinheiro em espécie. VEJA entrevistou o faxineiro Everson Guimarães, preso em flagrante quando ia receber 2.000 reais das mãos de Lancellotti. Ele é, até o momento, o único detido, sob a acusação de ter sido cúmplice na chantagem. Caberia a Guimarães recolher com o padre o dinheiro exigido por Anderson. O preso, que é defendido pelo mesmo advogado de Anderson, conta outra história: "Ele nunca ameaçou o padre. Pedia e recebia. Os dois eram amigos, o padre vivia procurando o Anderson". Guimarães disse que por cinco vezes foi ao encontro do padre. Em todas, recebeu envelopes recheados de cédulas de 50 reais. As quantias variavam entre 15.000 e 30.000 reais. VEJA também entrevistou o técnico em refrigeração José Carlos Ferreira, que tem uma loja na mesma rua em que Anderson é dono de uma pensão. "Além da Pajero, o Anderson também teve um Audi. Foi o padre quem deu", conta Ferreira. Em 2006, Anderson realmente adquiriu um Audi A3. VEJA ainda conversou com o vendedor que participou da compra da Pajero, em uma concessionária. O funcionário, que pediu para não ser identificado, disse que, no dia da compra, Anderson e sua mulher, Conceição Eletério, estavam acompanhados por Lancellotti: "Em momento nenhum o padre pareceu nervoso. Foi uma venda normal".