domingo, outubro 28, 2007

FERREIRA GULLAR Um operário chega ao paraíso


O conflito entre a classe operária e a burguesia pertence ao passado das ideologias

O LEITOR já deve ter percebido que oscilo entre os resmungos e a reflexão, e isso vale também tanto para filhos e netos, companheira, amigos quanto para o próprio país. E ocorre aleatoriamente, ao sabor dos acontecimentos e de súbitas sacações, nem sempre originais. É como na poesia: cheiro de tangerina tem alguma coisa de novo? Claro que não, mas pode me arrastar a inesperadas indagações.
E mais ou menos assim foi quando reparei que o conflito que se daria entre a classe operária e a burguesia dar-se-ia agora -depois da derrocada do socialismo real- entre pobres e ricos. Alguma novidade? Não, mas leva a outras coisas.
Por exemplo: o que representa a chegada de Lula ao poder no Brasil? É a vitória da classe operária? Mas o vice dele não é um empresário rico? E a política econômica que seu governo pratica não é a mesma do governo anterior, que ele denunciava como neoliberal? Então, o que de fato ocorreu, quem chegou ao poder no país com as eleições de 2002?
É essa uma pergunta ociosa? Pode ser, mas quem perde tempo especulando acerca de um cheiro de tangerina é capaz de tudo. Vou tentar respondê-la, ainda que me faltem os recursos próprios a um cientista social. E a primeira coisa que me ocorre é a lembrança de que, num passado já longínquo, Getúlio Vargas, ao mesmo tempo em que concedeu aos trabalhadores direitos de que não usufruíam, passou a manipulá-los, usando, para isso, o imposto sindical e o pelego -anulando assim a ação aliciatória dos comunistas. Deposto pelos militares em 1945, voltou cinco anos depois, nos braços do povo, para, em 1954, suicidar-se.
O seu herdeiro entre os trabalhadores era João Goulart que, chegado à presidência com a renúncia de Jânio Quadros, foi também derrubado pelos militares em 1964. Se àquela altura, já no contexto da Guerra Fria (que alimentava o anticomunismo), pelegos e comunistas se haviam tornado aliados, foram indistintamente expulsos da vida sindical e de toda atividade política pela ditadura que se implantara.
Esse fato assinala, sem dúvida, o fim de um período na história da luta sindical no Brasil. Os comunistas vão para a clandestinidade, os sindicatos passam às mãos de dirigentes coniventes com o regime autoritário. Acabam-se as greves e calam-se as reivindicações.
O ressurgimento da luta sindical, que se verifica no ABC paulista, na década de 1970, não tem qualquer vínculo com aquele passado: brota da pregação da esquerda católica junto a uma nova liderança sindical, a que se juntarão militantes contrários ao regime militar, alguns advindos da fracassada luta armada. Aliam-se ideólogos sem massa e um líder sindical sem ideologia, mas com massa, que atendia pelo apelido de Lula -e nasce o PT. Esse líder sindical sem ideologia poderia lembrar de algum modo o antigo pelego, com a diferença fundamental de que não era manipulado pela classe dominante, e com um traço semelhante: o uso da liderança em causa própria.
O que importa, porém, é que esse sindicalismo se opõe ao governo militar e, ao reivindicar os direitos dos trabalhadores, exige implicitamente a volta da democracia, além de reafirmar o sonho socialista de uma sociedade justa e igualitária. Mas, finda a ditadura, quando, em 1990, Lula se candidata à Presidência da República com um discurso radical de esquerda, é derrotado, e o mesmo ocorre, sucessivamente, em 1994 e 1998.
Eis então que, em 2002, ele obriga o PT a aceitar as suas condições para voltar a candidatar-se: chama um empresário para a chapa presidencial, transmuda-se em Lulinha paz e amor e adota um programa de governo palatável para a maioria do eleitorado.
Se se observa bem, o ultimato que Lula deu ao PT foi um choque de realidade, com que assume seu verdadeiro papel de líder conciliador, não-ideológico e pragmático, ao mesmo tempo em que põe o PT face a face com sua condição de partido ideologicamente superado pelo fim do socialismo real.
O empresariado, que se assustara com uma possível vitória de Lula, verificou em seguida que não havia o que temer. Houve, sem dúvida, uma mudança na correlação de forças, mas uma mudança política apenas, em que um líder de origem operária, em vez de ser usado pelo poder, agora o assume, não para mudar o sistema econômico, mas, sim, para preservá-lo.
O conflito classe operária versus burguesia pertence ao passado das ideologias, restando a Lula o papel conciliador de presidente de todos os brasileiros e protetor dos pobres, que se satisfazem com três refeições por dia.