domingo, outubro 28, 2007

Facetas da reestatização

Paulo Renato Souza

O governo Lula mais uma vez oferece sinais contraditórios na política econômica. De um lado, há movimentos inequívocos que visam à reestatização de vários setores da economia. Nos últimos meses constatamos iniciativas concretas nessa direção e um balão-de-ensaio - este último, a frustrada tentativa de criar um fato político com o chamado plebiscito sobre a reestatização da Vale do Rio Doce e que foi objeto de meu último artigo neste mesmo espaço. De outro lado, rende-se mais uma vez à realidade e promove o leilão de concessões de rodovias ao setor privado e anuncia outras ações semelhantes de privatizações na área de infra-estrutura.

As iniciativas concretas de reestatização já se observaram em alguns setores e, mais recentemente, no sistema financeiro. Neste campo, o governo anunciou que o Banco do Estado de Santa Catarina será entregue ao Banco do Brasil, ao arrepio da legislação vigente.

A possibilidade de federalização de um banco estadual não foi prevista quando da edição do Programa de Estímulo à Redução da Participação Estadual no Setor Financeiro (Proes), a partir da Medida Provisória (MP) 1.514, de 1996, posteriormente convertida na MP 2.192, de 2001. Esse programa fixou regras claras, pautadas pelos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, previstos no artigo 37 da Constituição. Essa legislação determina explicitamente que a desmobilização de ativos financeiros pertencentes ao setor público deve ser feita somente por meio de ofertas públicas e dos conseqüentes leilões, “assegurada a igualdade de condições a todos os concorrentes”. Segundo a lei, a União pode assumir o controle de uma instituição financeira estadual “exclusivamente para privatizá-la ou extingui-la”.

A expansão estatal no setor financeiro se observa também nas ações para assumir as folhas de pagamento de vários Estados. O Banco do Brasil vem oferecendo como contrapartida a aplicação nos respectivos territórios de linhas de crédito que só ele detém, por força das suas funções de agente financeiro do governo. Tais linhas estarão à disposição somente dos Estados afinados com a estratégia de expansão do banco sob controle do governo federal, com nítida ofensa às regras concorrenciais.

A atuação do Estado brasileiro no setor financeiro tem raízes históricas muito importantes. O Banco do Brasil cumpre algumas funções que dificilmente seriam atendidas pela rede bancária privada. A presença territorial do banco, atendendo a pequenas cidades, seguramente é uma delas. Não se contam entre elas, contudo, a prestação de determinados serviços que podem ser oferecidos, inclusive com mais eficiência, pelo setor privado.

Nossa Constituição consagra a livre iniciativa, restringindo a intervenção direta do Estado na economia como agente produtor apenas para situações extraordinárias. A grande presença estatal na economia nacional tinha raízes históricas muito anteriores à vigência da atual Carta Magna. O esforço para levar adiante o processo de privatizações no Brasil se iniciou nos anos 1990. Na época se discutia a ineficiência da gestão pública em alguns setores e o enorme peso orçamentário e financeiro que o governo tinha de suportar em razão dos déficits constantes e da necessidade de canalizar recursos fiscais para o investimento nas estatais. Numa outra visão, o programa de governo do então candidato Fernando Henrique Cardoso às eleições presidenciais de 1994 outorgou papel central às privatizações como uma das fontes de recursos para financiar os investimentos públicos.

Todo o processo de privatização se deu ao abrigo de legislação específica na defesa do interesse público e segundo princípios e práticas transparentes. É inquestionável o seu retumbante êxito, tanto na arrecadação de recursos para o Estado quanto na melhoria da produção, do emprego e da produtividade nas empresas privatizadas. Ênfase especial deve ser dada ao ocorrido nos setores de telefonia, siderurgia, mineração e produção de aeronaves. Além dos enormes ganhos econômicos e sociais para o País, evitaram barganhas políticas no loteamento de centenas de cargos de direção nas empresas privatizadas. Lembremo-nos de que apenas na telefonia havia 27 empresas de âmbito estadual pertencentes ao chamado Sistema Telebrás.

O primeiro ano do governo Lula, em 2003, foi consumido com ações para demonstrar que ele cumpriria os contratos e ajustes anteriormente fixados. Foi um esforço louvável e reconhecido amplamente pela sociedade brasileira e pela comunidade internacional. Já no primeiro ano do seu segundo mandato, o presidente lançou o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), para o qual esse histórico anterior lhe permitiria pedir a participação de agentes privados em projetos de longo prazo, em parceria com o Estado.

Para manter essa credibilidade será necessário, entretanto, conter no governo, em órgãos públicos e empresas estatais o ímpeto de agentes que julgam ser um mero detalhe o cumprimento da legislação e de obrigações e contratos. É estranho que, em boa parte desses eventos de reestatização, a iniciativa tenha partido de empresas públicas ou de economia mista, mobilizando o governo e mesmo órgãos reguladores para abocanhar fatias do mercado. Se existe a intenção de reestatizar setores da economia, é preciso submeter essa decisão ao Congresso e mudar a legislação hoje vigente no País. Sem a garantia do cumprimento da Constituição federal e das leis será inútil exibir índices positivos na economia brasileira para captar recursos e financiar projetos públicos.