sábado, outubro 27, 2007

Califórnia: celebridades castigadas pelo fogo

Inferno dos milionários

Incêndios florestais devastaram o sul da Califórnia, uma
das áreas mais ricas do planeta, forçando 1 milhão de
pessoas a deixar sua casa, entre elas estrelas de Hollywood

Chris Carlson/AP
Barracas cedidas pelo governo para abrigar 10 000 refugiados em estádio de San Diego


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Quando as chamas se aproximam e se torna urgente abandonar a casa, todas as questões existenciais de uma vida podem se resumir a três palavras: o que levar? Na semana passada, uma série de incêndios florestais devastou o sul da Califórnia, forçando 1 milhão de americanos a deixar às pressas suas casas ameaçadas pelo fogo. Na hora do susto, decidir como empacotar sua vida em uma mala não é uma tarefa fácil. Com 12 000 metros quadrados de área erguida em estilo mediterrâneo no alto de uma colina, a casa do investidor Bob Jaffe queimou até os alicerces no domingo 21. Devido à imponência e à localização da residência (Rancho Santa Fe, nos arredores de San Diego, a segunda localidade mais rica dos Estados Unidos), o incêndio foi acompanhado por equipes de televisão. No dia seguinte, entre os escombros, Jaffe angustiava-se com sua escolha final. "Sim, consegui salvar o Porsche", disse numa entrevista. "Mas talvez tivesse sido melhor salvar os bichinhos de pelúcia da minha filha."

O serviço de emergência da Califórnia recomenda que cada um se prepare para tirar todos os familiares da casa e os animais de estimação. No manual produzido pelo governo estadual, há uma lista de dezenas de coisas para serem levadas em caso de incêndio. Se o tempo for escasso, a recomendação é se concentrar em itens prioritários: remédios de uso contínuo, artigos de higiene pessoal, documentos e dinheiro. No caos do desastre, a lógica nem sempre prevalece. A psicóloga Helen Lena Astin, citada pelo jornal Los Angeles Times, diz que é impossível prever o que as pessoas vêem como essencial em momentos de crise. Ela lembra de um amigo que voltou à casa em chamas para pegar o smoking, sob a justificativa de que seria difícil encontrar outro que lhe caísse tão bem. Na semana passada, esse tipo de comportamento foi visto em profusão. Uma moradora de Malibu tratou de salvar um par de sapatos de 1 000 dólares. Entre os desabrigados, havia alguns que carregavam teses de mestrado, recibos de impostos, ingressos de shows, cartões-postais antigos. Outra pessoa, diante do céu coberto de fumaça, lembrou-se de pegar as cinzas da mãe, mas esqueceu os gatos. Ela teve de voltar correndo para buscá-los.

Um manual oficial para essas ocasiões é necessário porque os incêndios florestais no sul da Califórnia fazem parte do calendário anual. Algo similar às enchentes no Brasil, com a notável diferença de as vítimas do desastre estarem entre os mais ricos dos Estados Unidos, incluindo muitas estrelas de Hollywood. Com um clima do tipo mediterrâneo, em que a chuva só aparece durante o inverno e os verões são extremamente secos, o mais rico estado americano registra a cada ano uma média de 8 000 focos de incêndio em áreas de matas. Em geral, as chamas logo são controladas pelos bombeiros. Desta vez, o fogo fugiu ao controle. Em quatro dias, a partir do domingo 21, 23 grandes incêndios e centenas de focos menores formaram-se em diferentes áreas desde a região de Santa Barbara, a noroeste de Los Angeles, até a fronteira com o México, 386 quilômetros mais ao sul. Somando-se todas as áreas queimadas, chega-se a 2.100 quilômetros quadrados, o equivalente a duas vezes o município do Rio de Janeiro. O fogo tomou de assalto as matas e, em questão de horas, incinerou mansões, carros e lojas de luxo. Em Malibu, o espetacular trecho de praia preferido pelos milionários, labaredas atingiram, entre outras, a casa da atriz Jennifer Aniston e a de Mel Gibson, arrasaram dois trailers do ator Sean Penn e provocaram uma debandada de astros e estrelas (veja o quadro) como nunca se vira antes, exceto, evidentemente, nas telas de cinema.

A cidade de Malibu já foi arrasada em três incêndios nos últimos 100 anos. Ainda assim, milionários continuam disputando suas casas, especialmente em Malibu Colony, onde uma residência à beira da praia particular custa 15 milhões de dólares, e Carbon Canyon, com terrenos de 6 milhões de dólares. Todos os moradores desses dois locais elegantes tornaram-se provisoriamente refugiados. Tal regularidade de incêndios com seu potencial destruidor suscita a pergunta de por que pessoas tão ricas continuam morando em uma região assim perigosa. No blog do jornal Los Angeles Times, um desabrigado deu a seguinte explicação: "Quando você constrói sua casa nessa região, aceita a possibilidade de incêndio, prepara-se para o pior e espera que ele nunca ocorra". O coeficiente de esperança é somado ao fato de que o espírito da região dificilmente pode ser transferido para outro lugar, mesmo para as praias da Flórida. O glamour de Hollywood, as universidades e o pensamento mais aberto dos californianos não podem simplesmente ser transplantados. São Francisco é muito diferente de Miami. Essa diferença é mantida com a luta contra o fogo e a confiança na eficiência dos serviços de emergência.

O incêndio foi, em termos de prédios destruídos, pessoas mortas e desalojadas, o segundo mais devastador da história da Califórnia. Matou sete pessoas, quatro delas imigrantes mexicanos que tentavam aproveitar a fumaça para entrar em território americano. O grande incêndio anterior, em 2003, apesar de a área atingida ter sido menor, destruiu o dobro de imóveis e deixou 24 mortos. Os estragos relativamente menores se devem, em boa parte, à presteza dos serviços de emergência. Escaldadas pelo fiasco do socorro das vítimas do furacão Katrina, em 2005, as autoridades americanas, desta vez, acudiram como uma máquina bem azeitada, quase excessiva. No Estádio Qualcomm, do time de futebol americano Chargers, em San Diego, para onde foram cerca de 10.000 pessoas, o cenário era bem diferente do abandono visto no Superdome, em Nova Orleans, quando o furacão Katrina atingiu a cidade. Em vez do descaso e da violência que deixaram as pessoas em pânico no Superdome, o que se via eram crianças gargalhando com atividades coordenadas por palhaços, adultos recebendo massagem e acupuntura, uma banda de blues para acalmar os ânimos e psicólogos rodando pelo estádio para confortar os desabrigados. Voluntários distribuíam fraldas e revistas e até um quiosque do Starbucks estava instalado no local. Em certo momento, havia ali um funcionário público ou voluntário para cada refugiado.

A comparação entre os desastres é, em certa medida, um tanto forçada. Em Nova Orleans, gente pobre esperava ser evacuada por ônibus bloqueados pelas enchentes. Na Califórnia, os moradores abastados fugiam no próprio carro e estavam em contato constante com as autoridades e os amigos. Em San Diego, a área mais atingida, um sistema de ligações de emergência, o "911 invertido", fazia telefonemas com uma gravação avisando as pessoas de que deveriam abandonar suas casas. O governador Arnold Schwarzenegger tinha preparado com cuidado o estado da Califórnia para a tragédia anunciada. O presidente George W. Bush, ainda escaldado pela própria paralisia durante o desastre do Katrina, desta vez reagiu rápido e enviou soldados, aviões, helicópteros e tudo o mais que pôde para socorrer os desalojados.

A pergunta que fica agora é se todo o dinheiro da Califórnia pode ou não controlar os incêndios. Três fatores explicam como o fogo tomou proporções tão catastróficas: a baixa umidade do ar, altas temperaturas e ventos fortes. São todos muito comuns no sul da Califórnia, mas desta vez foram mais intensos. A seca na Califórnia é uma das maiores dos últimos anos. Em 2006, a região de Los Angeles teve menos de 13 centímetros de chuva. Com umidade relativa de 5%, a vegetação nas montanhas do estado ficou completamente seca, transformando-se em um perfeito combustível. Numa situação assim, qualquer faísca, que pode ser causada por um mau contato em um cabo de energia elétrica ou fagulha que escapa de uma fogueira de acampamento, é suficiente para que a vegetação pegue fogo facilmente. A polícia encontrou evidências de incêndio criminoso em nada menos que dezoito focos mais recentes e estabeleceu uma recompensa de 285 000 dólares por informações que levem ao incendiário.

O verdadeiro vilão do sul da Califórnia é um vento chamado Santa Ana, característico desta época do ano. Vindo do deserto, forte e quente, ele pode aumentar a temperatura do ar em 6 graus. Na semana passada, as rajadas chegavam a 170 quilômetros por hora, espalhando fagulhas e criando outros focos de incêndio nas matas e nas casas. "Essas centelhas chegam a voar até 3 quilômetros. Elas entram nas casas por frestas e começam a queimar tudo de dentro para fora", disse a VEJA Max Moritz, do departamento de ciência ambiental da Universidade da Califórnia, em Berkeley, e um especialista em incêndios. Mudanças demográficas também explicam a enorme dimensão dos estragos. Nos últimos trinta anos, 8,6 milhões de casas foram construídas no Oeste americano a menos de 50 quilômetros de florestas nacionais. Esse movimento é particularmente intenso na Califórnia. Viver perto da mata significa estar próximo do fogo, que faz parte do mecanismo natural de renovação da vegetação. Por ironia, a intensidade dos incêndios é, em parte, decorrência do empenho preservacionista, que impede a limpeza da mata. Paradoxalmente, a presteza com que as autoridades californianas enfrentam os incêndios acaba contribuindo para agravar o problema. "Os bombeiros conseguem abafar quase 99% dos focos que surgem. Mas, com isso, eles permitem que a vegetação cresça, o que só faz acumular lenha e aumentar o potencial da tragédia", explicou a VEJA Richard Minnich, professor de ecologia do fogo da Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Um pouco mais ao sul, do outro lado da fronteira, as autoridades mexicanas incentivam a criação de cabras nos arredores de cidades e vilarejos para manter o mato sob controle. Essa estratégia, de baixíssimo custo, funciona, e os incêndios periódicos causam menos estragos no México que nos Estados Unidos. Na verdade, a única coisa que os habitantes da Califórnia podem fazer é manter a vigilância. E fugir quando o incêndio recomeçar em outubro do ano que vem.





Mike Blake/Reuters, Lester Cohen/Getty Images, Chip East/Reuters, Michaela Rehle/Reuters, Mario Anzuoni/Reuters, Jason Merrit/Getty Images, Charley Gallay/Getty Images, Joshua Roberts/Reuters, Getty Images, Lucas Jackson/Reuters, Mario Anzuoni/Reuters, Nathan Strange/AP
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