quarta-feira, outubro 31, 2007

A briga dos sem-força contra os sem-razão


artigo - José Nêumanne
O Estado de S. Paulo
31/10/2007

Trava-se neste instante nos bastidores dos altos Poderes da República um daqueles conflitos que eram denominados “briga de foice no escuro” nas priscas eras de minha infância no sertão do Rio do Peixe. Ao contrário do que se poderia imaginar, ou até desejar, não se enfrentam na liça governo e oposição, mas governantes e representantes, governadores e senadores de um mesmo partido, o PSDB. O primeiro grupo se perfila e bate continência para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, aderindo à pressão para a aprovação rápida e rasteira da prorrogação da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) por mais quatro anos. Enquanto isso, a segunda tropa se dispõe a lutar até o último cartucho contra mais uma postergação do fim do imposto do cheque, que, de adiamento em adiamento, enverga cada vez mais o P de perene, e cada vez menos o de provisório.

O grande filósofo contemporâneo Guido Mantega - com sua sutileza diplomática, ao ameaçar aumentar impostos, caso não seja permitido ao governo a que pertence contar com os R$ 40 bilhõezinhos moles, moles, que lhe adentram os cofres todo ano - já deu o tom dessa pendenga. Afinal, segundo o preclaro mestre, quem governa e quem pretende governar sabe que, mais dia, menos dia, vai precisar do complemento garantido da “contribuição” criada para minorar a tragédia da saúde pública nacional, que, como exibem todas as evidências, continua indo de mal a pior. Em política, se as evidências desmentem (e desmontam) os pretextos, pior para as evidências! Afinal de contas, o vistoso ministro da Saúde, José Gomes Temporão, que se tem destacado mais pelo que diz do que pelo que faz, está em ação, esgrimindo argumentos usados antes por seu colega de ofício Adib Jatene, que propôs o infame imposto no século passado. Contra a proclamação patriótica do cruzado contra o fumo e a favor da descriminalização do aborto clamam os fatos escancarados nos jornais: o descalabro dos hospitais públicos no Nordeste; as brocas reaproveitadas de furadeiras e as talas de papelão utilizadas nos mais renomados nosocômios de seu Estado, o Rio de Janeiro; um surto surpreendente de rubéola; e a crônica da derrota anunciada dos mata-mosquitos federais para o inseto da dengue. Tudo isso, com os bilhões da CPMF entrando nas burras do governo! Mas, como a gestão pública é cada vez mais a retórica a serviço da versão, sem consideração alguma pela realidade, vale mesmo o discurso do chefe do governo, para quem o atendimento médico gratuito dado pelo Estado ao povo brasileiro é “quase perfeito”.

Na saúde ou na doença, como nas prédicas das cerimônias de casamento, a CPMF tem encontrado mais prosélitos que inimigos de peso. A tucana gaúcha Yeda Crusius nem precisou ouvir o assovio sedutor da sereia da patota oficial para se juntar aos colegas de Paraná, Santa Catarina e Mato Grosso do Sul no bloco dos adesistas. Seu correligionário paulista José Serra preferiu resguardar-se atrás de alguma promessa de redução da carga tributária em troca do apoio de sua bancada ao prolongamento da cobrança direta da conta bancária do contribuinte. Este jornal contou anteontem 18 chefes de Executivos estaduais que passaram a exigir do Senado idêntica submissão que a Câmara teve ante os desígnios dos oráculos do Planalto.

Serra - dir-se-á - é candidato à vaga de Lula e não vai querer governar sem as folgas de caixa que a arrecadação do imposto a ser prorrogado permitirá. É mais uma prova de como os tucanos são débeis na oposição. Falta-lhes a lógica implacável do poder que os adversários petistas exibem na geléia geral que fazem mesclando cinismo malufista com pragmatismo stalinista. Todo dia a imprensa reproduz opiniões violentíssimas da cúpula do PT contra as prorrogações da CPMF nas duas administrações federais tucanas, sob Fernando Henrique. Nada disso abala a convicção dos companheiros de que nunca antes, em tempo algum, nenhum estadista foi, é ou será capaz de prometer ao povo dos sem-conta-em-banco o que este merece sem dispor para tanto do garfinho oportuno nos saldos e “privilégios” dos com-cheque-e-fundo. Será que algum oposicionista desavisado acha que, chegando ao poder, contará com o apoio do PT na oposição à permanência do provisório sem fim? Ah! Ah! Ah!

Na guerra contra o prolongamento da garfada, pode-se imaginar que a faca e o queijo estejam na mão dos senadores. Mas talvez não estejam! Falta-lhes o poder que os governadores têm de manejar verbas e empregar em seus Estados. E aqueles carecem, sobretudo, de autoridade para empreender uma cruzada contra o avanço imoral do esfarrapado Estado brasileiro para dentro do bolso roto do cidadão. O Senado expõe-se às intempéries do escândalo Renan e, chafurdando no charco de Alagoas, se deixou atolar nas veredas mineiras das primícias do mensalão, sob as barbas do ex-presidente nacional do PSDB Eduardo Azeredo. Os tucanos, que já haviam perdido a moral para reclamar da corrupção no PT e, com ela, a eleição presidencial para Lula, agora despejam no esgoto da História a oportunidade rara de um beau geste na chamada Câmara Alta, pois trocaram a misericórdia a Renan pelo prévio perdão ao companheiro deles, lá das Alterosas.

Enquanto Lula sonha com o terceiro mandato, seus adversários lhe asfaltam o caminho para que realize o doce capricho. E o fazem tanto ao se acumpliciarem com os mensaleiros governistas e a imundície alagoana quanto ao arrastarem na lama o estandarte de um movimento que possa resgatar a pele do contribuinte da tosquia permanente. Opor-se à prorrogação agora pode até ser entrar na guerra sem perspectiva de vencê-la, mas pelo menos seria agarrar mais uma oportunidade que a História lhes dá de fazer algo que possa ser considerado digno de uma oposição decente e sensata.