O aspecto mais importante da chegada de partidos de esquerda ao poder através do voto na América Latina é, em uma análise de longo prazo, deixando de lado as questões conjunturais, o rompimento de certas situações oligárquicas, embora em muitos casos, como no Brasil, esse rompimento tenha significado apenas um deslocamento para o centro do PT, em busca de alianças justamente com as oligarquias para chegar à Presidência. Essa análise faz parte da edição em espanhol do Atlas Eleitoral Latino-Americano, parceria do Instituto de Altos Estudos da América Latina (IAEAL), da Sorbonne, que analisa as últimas 12 eleições presidenciais na Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, Honduras, México, Nicarágua, Peru e San Salvador.
O estudo é resultante do trabalho de um grupo de pesquisadores que vem buscando analisar eleições presidenciais tendo a cartografia como ferramenta. A coordenação da parte brasileira foi feita pelo professor Cesar Romero Jacob, cientista político da PUC do Rio de Janeiro.
Segundo essa análise, quando Lula se impõe como principal liderança de esquerda em 1998, “considerando que o eleitorado de esquerda tradicionalmente sempre foi 1/3, ele tinha que se deslocar para o centro para ganhar a eleição presidencial. Isso significava se deslocar para cima do PSDB, que tinha ocupado o espaço do centroesquerda” .
Para Cesar Romero, “o que surpreendeu não foi o deslocamento do Lula durante a campanha de 2002, foi o fato de que aquela guinada era para valer, não era só para ganhar a eleição, era também para governar.
Ao chegar ao poder, ele vai se transmutar no verdadeiro partido da social-democracia brasileira”.
Lula e o PT não usavam mais o socialismo retórico radical “que só é possível na oposição, mas vai incorporar bandeiras do PSDB, a idéia da estabilidade, e emplaca um grande tento quando unifica os programas sociais do Fernando Henrique, racionalizando e ampliando”. Como resultado, “acaba abocanhando parte de um eleitorado que tradicionalmente votava nos candidatos indicados pelas oligarquias”.
Segundo o professor da PUC, é importante quebrar a hegemonia das oligarquias pelo voto, porque “quando a esquerda não chega ao poder pela via eleitoral, cai em tentações, sendo uma delas a revolucionária, que acaba atrapalhando a consolidação do regime democrático”. Outra tentação, segundo ele, é que “jovens militares antioligárquicos poderão redimir o país, como tivemos aqui com os tenentes”.
Em outros países da América Latina, essa idéia também está presente, e ele cita a Colômbia, “um país altamente oligárquico, onde a esquerda democrática não consegue chegar ao poder”.
Para Cesar Romero, diferentemente do que existe hoje, “as Farcs, na origem, têm a ver com esse processo”. A Venezuela também era muito oligárquica “e quando rompe com esse sistema cai na tentação de ter militares à frente do processo. A força do Hugo Chávez vem muito das Forças Armadas”, analisa.
O que essas eleições acabaram mostrando, diz Cesar Romero, “é que, para se ganhar eleição no Brasil, você não pode deixar de lado algum grau de compromisso com as oligarquias que dominam os grotões e com os pastores pentecostais e os políticos populistas que dominam as periferias metropolitanas pobres, os nossos estudos demonstram sistematicamente isso. Foi assim que Collor e Fernando Henrique se elegeram”.
Cesar Romero diz que Collor foi o primeiro “a perceber que era preciso uma composição com as oligarquias, porque são as máquinas existentes nos grotões do país, e não adianta imaginar que máquinas não existem. Ao mesmo tempo, é fundamental ter discurso para competir pelo eleitorado das classes médias urbanas escolarizadas. O nosso trabalho chama isso de ‘fórmula política’”.
O professor Cesar Romero não acredita que o programa Bolsa Família tenha substituído as oligarquias nos grotões, mas sim que as oligarquias aderiram ao Bolsa Família. “Não é um voto independente das populações, uma ligação direta do Lula com o eleitorado, na tradição populista da América Latina. Pelos estudos que já fizemos, não me parece que tenha havido uma adesão espontânea dos grotões à figura do Lula, até por que quem administra o Bolsa Família no plano municipal são as prefeituras, e portanto a oligarquia local”.
Confirmando a análise, basta lembrar que o primeiro racha no Bolsa Família surgiu com o então assessor especial da Presidência, Frei Betto, que queria tirar os prefeitos e dar autonomia aos conselhos municipais, formados pela sociedade civil local. O programa só começou a funcionar nos termos atuais quando Patrus Ananias, que foi prefeito de Belo Horizonte, assumiu o Ministério do Desenvolvimento, e colocou as prefeituras no esquema.
Para Cesar Romero, “o grande ganho do Bolsa Família é que você está dando dinheiro para as pessoas e não para as prefeituras.
A mudança política é que antes você dava dinheiro para o prefeito construir a praça ou o ginásio, e agora você está irrigando a economia local”.
Para ele, as oligarquias ganharam um novo instrumento para fazer política, “porque essas oligarquias não têm ideologia, os municípios pobres não têm como ter um voto de opinião.
Quem pode ter voto de opinião são as classes médias urbanas das cidades grandes e médias. A necessidade impõe ao pequenos municípios pobres uma adesão ao governo federal, que é quem tem dinheiro no país.