domingo, julho 01, 2007

A vaca sai do brejo Gaudêncio Torquato


A política descobriu que, vez ou outra, é um bom negócio tirar a vaca do brejo e integrá-la ao corpo de defesa de envolvidos em escândalos. Marcos Valério, pivô da crise do mensalão, garantiu que os saques elevados nas contas de suas empresas tinham um destino: comprar gado. O dinheiro para pagar alta pensão à jornalista Mônica Veloso era da venda de gado, diz o presidente do Senado, Renan Calheiros. E para explicar como recebeu um cheque de R$ 2,2 milhões o ex-governador do Distrito Federal e hoje senador Joaquim Roriz alegou tratar-se de um empréstimo para a aquisição de uma novilha no valor de R$ 300 mil. Quem entra fundo no pasto da política descobre a razão de tanto interesse por um setor que já conta com 200 milhões de cabeças. Constata, por exemplo, que a vaca é a matriz simbólica encravada na estrutura psicossocial de parcela considerável de nossa gente, para quem o Estado é uma fazenda leiteira que sustenta os boiadeiros do patrimonialismo nacional. São eles que cantam aos berros: “Quem não chora não mama.” Por isso, a bezerra que se apresenta às Comissões de Ética e aos tribunais tende a ser mero artifício para comprovar operações contábeis. O papel do gado na história está mais para “bode expiatório”.

Imaginar que o rebanho de Calheiros ou os 5 mil bois de Roriz darão carne suficiente para o banquete corporativo do perdão é confiar na idéia de que a memória do povo é curta. Achar que a novilha de um tomará o lugar da boiada de outro é apostar na hipótese de que as chuvas de hoje apagam os vestígios da borrasca de ontem. Ademais, um caso envolvendo o presidente de um Poder permanecerá sob luzes fosforescentes. Para ascender à dignidade o Senado não tem alternativa senão seguir o conselho de Hobbes: “Os pactos sem a espada não passam de palavras.” A espada, nesse caso, é o tratamento imparcial e justo aos dois senadores, que requer investigação aprofundada dos fatos e obediência ao rito legal, com amplo direito de defesa. Não se pode, antecipadamente, crucificar nem Renan nem Roriz. Porém, a predominar o compadrio, a Câmara Alta deixará de ser a guardiã do pacto federativo para ser o esconderijo do cambalacho corporativo. O “desconvite” ao senador Renato Casagrande, de quem se esperaria independência como relator, aponta nesse sentido. Vergonha que porá em xeque a própria funcionalidade do Senado.

Já se disse que o Brasil é um “cadáver adiado que procria”, na expressão poética de Fernando Pessoa. A atual avalanche lembra os eventos que culminaram, em 2001, com a renúncia dos senadores Antônio Carlos Magalhães e José Roberto Arruda, pela quebra do sigilo do painel de votação do Senado, e, três meses depois, do presidente da Casa, Jader Barbalho, envolvido em denúncias de corrupção. As crises se multiplicam na vertente da impunidade. Se os mecanismos de apuração estão hoje mais ágeis ou se o grampeamento de telefones lembra o “Estado Big Brother”, isso não significa mais punição. Eis a encruzilhada que separa os miseráveis materiais dos miseráveis morais. Se os colarinhos-brancos atravessam incólumes os corredores da Justiça, as hordas das ruas se acham no direito de continuar às margens da ordem. Onde não há coerção, não há obediência às leis. Veja-se a depredação e a rapinagem na Reitoria da USP. Sem punição para os depredadores, a “nova classe estudantil” será motivada a quebrar prédios públicos, sob aplausos de meia dúzia de falsos educadores que vêem na barbárie a mão civilizatória do futuro. Se os cinco rapazes que agrediram uma doméstica na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, não forem punidos, bater em mulheres será, logo, logo, o esporte da turminha que “não deveria ir para a prisão” porque, segundo a mãe de um deles, são “da alta”.

Os senadores hão de se conscientizar de que a violência é um novelo que é puxado por cima. Se fecham os olhos à iniqüidade, só terão olhos para enxergar o caos. “As leis são como as teias de aranha: os pequenos insetos prendem-se nelas e os grandes as rasgam sem custo”, ensina Anacársis, um dos sete sábios da Grécia. Sob essa lição, fica fácil entender as angústias nacionais apontadas na última pesquisa Sensus. A corrupção é a principal vergonha, seguida da violência. As duas são irmãs siamesas. O sangue que corre nas veias de uma passa pela outra. Fica também clara a razão por que Lula é tão benquisto. Ora, o Parlamento nacional é visto como um território suspeito. A pesquisa mostra que apenas três entre cem pessoas crêem nos políticos, ou seja, 97% dos brasileiros acham que eles não merecem respeito. E Luiz Inácio, mesmo com um irmão metido em encrencas, continua a se beneficiar da condição de maior ícone da dinâmica social no Brasil. Exibe 64% de aprovação.

E mais: no meio do torvelinho, o que aparece para saciar o estômago dos habitantes da base da pirâmide é a mão de Lula. A massa carente não se incomoda muito com aviões no ar. No camarote presidencial, entre baforadas de charuto cubano, Luiz Inácio diverte-se com o desfile de bois e novilhas no curral senatorial. “Quem pariu a bezerra que a embale”, pensa, enquanto prega que todos são inocentes até prova em contrário, jeito matreiro de apoiar Renan. E passa a solfejar a música Admirável Gado Novo, de Zé Ramalho: “O povo foge da ignorância, apesar de viver tão perto dela, e sonham com melhores tempos idos, contemplam essa vida numa cela, esperam nova possibilidade de verem esse mundo se acabar. A Arca de Noé, o dirigível, não voam nem se pode flutuar. Vida de gado, povo marcado, povo feliz.”