domingo, julho 01, 2007

Daniel Piza

Apagão político


Se não existe pecado abaixo do Equador, peculato tem de sobra.

O que a democracia brasileira vive no momento é um apagão político. O blecaute é conseqüência da equiparação entre forças; como se sabe, para gerar energia é preciso atrito. Tal equiparação, como não poderia deixar de ser, se dá na freqüência mais rasteira possível, ali onde os interesses mais mesquinhos consomem a atividade de todos. Não se trata de um nivelamento por baixo, mas de um nivelamento às avessas, pelo que cada um tem oculto. Não há nem mesmo a hipótese de que a aproximação de interesses particulares tenha como subproduto o benefício público. Quando vejo dois políticos brasileiros almoçando, saco imediatamente o cartão de débito.

A subida do PT ao poder máximo agravou o problema. Não porque ele fosse até então a reserva moral que se dizia, mas porque mudou de discurso para seduzir eleitorado maior e escancarou a semelhança com os demais. É da política funcionar por interesses e desrespeitar as palavras; anular o conflito, esvaziando a mais simples dissonância, é abolir a política, aquilo que Aristóteles dizia nos caracterizar como animais. Só há duas maneiras de liquidar o pluralismo partidário. Uma delas é a tirania. A outra é um sistema no qual as diversas siglas não significam nada. Todas são da situação; ou melhor, qualquer oposição está apenas à espera de ser cooptada.

Os outros partidos, aliados declarados do governo ou não, viram na 'normalização' do PT a oportunidade para já não disfarçar o oportunismo. O PSDB é o exemplo máximo. Na crise do mensalão, afora bravatas como as de Arthur Virgílio, não soube agir. Quando veio à luz a relação entre Marcos Valério e o tucanato mineiro, foi incapaz de mostrar pulso. Quando ouviu do presidente Lula, como todos nós, que fazer caixa 2 era praxe no Brasil, não pegou seu balanço e seu megafone e saiu gritando: 'Nós não fazemos.' Não espanta que tenha entrado na campanha de 2006 dividido e desnorteado, com um candidato que nem teve coragem de defender a privatização.

O máximo que alguns como Fernando Henrique Cardoso fizeram foi murmurar que em seu governo a corrupção 'podia até existir, mas não era sistêmica'. Existe algo mais sistêmico do que a corrupção na história secular do Brasil? Daí o vácuo político atual, a ausência quase total de reação aos desmandos em pauta, a incompetência para defender a lei e propor mudanças. Por esse motivo vemos cada vez mais um partido como o PSOL ocupando títulos de reportagens e câmeras de televisão como 'outro lado', à moda do que o PT fazia na década passada. Foi o PSOL, afinal, que tomou atitude concreta contra os senadores Renan Calheiros e Joaquim Roriz, que tratam a opinião pública feito gado, mas cujas fazendas não são investigadas pela PF e pela Justiça. O mérito não é do PSOL, com suas noções primitivas; o demérito é de toda a classe política.

Exceções existem mesmo nesse Senado safado, como Jefferson Perez e Pedro Simon, mas não chegam a ser alento. Eles são tribunos, são Catulos da república tupiniquim, não membros de partidos que representem setores ou vetores da sociedade. São vozes da ética, pairando acima do jogo político - o que só reforça a sensação de que esse jogo é jogado sem as peças da ética. O que há em comum entre Perez e o PDT, o partido do 'socialismo moreno' de Brizola? O que há em comum entre Simon e o PMDB, o partido que todos no fundo imitam, em sua fisiologia indestrutível? Sem oposição a não ser a circunstancial, a conveniente, o governo PT-PMDB segue repetindo chavões - como Lula dizendo que Renan é inocente até prova em contrário - para conter o mínimo de ação institucional que existe no Brasil.

Pode-se dizer que o semicolapso político é reflexo de uma sociedade também pobre em idéias, critérios, valores, em que a maioria dos cidadãos se sente de rabo preso por cometer ou aceitar que se cometam ilegalidades a todo instante. Também costumo ouvir que o comportamento nada ético do PT - como se fosse recente - é o 'preço a pagar' para ter chegado lá e poder fazer uma ou outra coisa que outros não fariam, ainda que não me digam quais coisas. Mas as regras disponíveis, repito, são suficientes para que a impunidade comece a ter fim. Além do mais, o sistema partidário não é um espelho puro da sociedade, especialmente numa democracia imatura. Isso justifica que seja tão distorcido, tão mal desenhado, com pelo menos seis partidos que podem ser qualificados de grandes ou influentes? É algo inédito no mundo.

Esse sistema é tão nocivo que desmoraliza a própria idéia de reformá-lo, com idéias esdrúxulas feito lista fechada, lista 'flex', financiamento misto de campanha, etc. e argh. Por sinal, eis algo que publicações de primeira como The Economist e Financial Times não compreendem quando analisam o caso brasileiro, o país cujo potencial é eternamente travado por freios como gastos públicos crescentes, infra-estrutura precária, desqualificação educacional do trabalhador e tantos mais. Quando os ventos sopram a favor, gerando números um pouco melhores, é justamente aí que o Brasil não faz reformas de verdade. Como o Exército em Canudos, só mostra fibra na adversidade. Quando muito.

UMA LÁGRIMA

O que fica de Bruno Tolentino não é a figura excêntrica, de alguém que foi amigo de intelectuais famosos na Europa e preso injustamente por tráfico de drogas na Inglaterra, ou que polemizou com os concretistas ao mostrar equívocos nas 'transcriações' do inglês e alemão. Era um tradicionalista com pinta de 'maldito' e sua poesia muitas vezes se ressente disso, caindo numa retórica grandiloqüente, metafísica, como nos premiados As Horas de Katharina e O Mundo como Idéia. Mas deixou alguns sonetos excelentes, com versos memoráveis como os da Balada do Cárcere - 'a véspera desespera' - enlaçados pela técnica do 'enjambement', da qual era mestre, como notei em 1996. E tinha uma seriedade na dedicação à obra que é rara nestes trópicos.

RODAPÉ (1)

J. M. Coetzee, o escritor sul-africano radicado na Austrália que vem ao Brasil para a Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), tem muito talento e isso se verifica de novo logo nas primeiras páginas de seu mais recente romance, Homem Lento. Um fotógrafo aposentado, solteiro e sem filhos, Paul Rayment, é atropelado em sua bicicleta e tem a perna amputada. Sente fortes desejos pela enfermeira croata, mãe de três filhos e casada, Marijana Jokic. Mas a vibração narrativa acaba aí. Antes da metade do livro reaparece Elizabeth Costello, escritora personagem de Coetzee em outros livros, e a relação dela com Rayment passa a conduzir tudo. É como se o personagem passasse a conviver com a autora dos outros, o que inicia um embate literário ao estilo pós-moderno. No entanto, a trama perde força. Nem mesmo a seqüência em que ele faz sexo com uma profissional fica livre de ser convertida em metalinguagem. A sensação é que Coetzee, autor do ótimo Desonra, trama cheia de surpresas e sutilezas morais, esboçou um conflito, o núcleo da história, e não o desenrolou. Acontece.

RODAPÉ (2)

Para quem acha que clássicos são perda de tempo ou que não há nada de novo a dizer sobre eles, os desmentidos não cessam de surgir. E sobre um autor em especial: William Shakespeare. Nos últimos anos saíram livros excelentes como os Helen Vendler, Frank Kermode e Harold Bloom e a biografia escrita por Stephen Greenblatt, Will in the World, a pedir tradução. Agora sai Shakespeare, the Thinker, de A.D. Nuttall (Yale University Press), professor de Oxford, que escreve com uma bossa e elegância que fariam corar nossos acadêmicos se o lessem. A tese é tão simples quanto original: Shakespeare não é apenas um escritor de imaginação poderosa e dom poético, mas também um pensador, um sujeito tão inteligente quanto, digamos, Newton ou Darwin.

Nuttall examina as questões filosóficas abordadas por Shakespeare peça a peça, analisando a complexidade de suas falas e histórias, nas quais encontra temas como a vida depois da morte, a teoria da percepção, a confusão entre sonho e realidade, otimismo x pessimismo. Faz a melhor defesa que já li do episódio do lenço em Otelo, sempre criticado como inconsistente (para ele, o mouro não inicia sua vingança porque toma o lenço como prova da traição de Desdêmona, mas porque se sente inferior naquela sociedade), e de passagens de Hamlet e Lear. Mostra como Shakespeare interpretou debates e fatos de sua época, como a ascensão do protestantismo, e compara suas idéias com a de pensadores anteriores ou posteriores, de Aristóteles a Karl Popper. E conclui que o bardo era um cético, mas tudo menos um niilista, pois unia aos poderes críticos do intelecto o intenso interesse na vida ao redor.

POR QUE NÃO ME UFANO

O que pensar de quem acha que esmurrar prostituta é diversão? E tem o perdão dos pais por 'não passar de uma criança'?

E-mail: daniel.piza@grupoestado.com.br Site: www.danielpiza.com.br