sábado, junho 30, 2007

VEJA Entrevista: Jiang Shixue

O Brasil visto da China

O professor chinês, especialista em economias
latino-americanas, aconselha os brasileiros a
parar de reclamar e competir


Juliana Vale

Divulgação

"A economia chinesa tem
participação pequena no
PIB mundial. Não dá para
culpar a China por tudo"

O professor Jiang Shixue, 50 anos, atua em uma área nada comum na China: é especialista em América Latina, tendo dedicado as últimas três décadas ao estudo da economia dos países da região. Conhecedor, portanto, dos processos de desenvolvimento dos dois lados do mundo, considera que o Brasil poderia ser o país do presente, como a China, se reduzisse o desnível entre ricos e pobres, investisse mais em educação e criasse um modelo de crescimento próprio, como a China o fez. Orgulhoso das conquistas chinesas nos últimos anos, Jiang diz que Mao Tsé-tung ainda é seu maior herói. Diretor da Academia Chinesa de Ciências Sociais, autor de vários livros sobre a América Latina e tradutor do brasilianista Thomas Skidmore, Jiang viaja bastante, tendo assim acumulado um patrimônio expressivo para os padrões locais. Casado, uma filha (ela estuda finanças internacionais), Jiang, em bom inglês, deu esta entrevista em seu escritório em Pequim.

Veja – O que é que a China tem e o Brasil não tem?
Jiang – A China está crescendo mais rápido simplesmente porque escolheu um modelo de desenvolvimento que é compatível com as condições nacionais chinesas. Cada país deveria adotar um padrão que se adapte ao seu contexto específico. Desde que começou a fazer reformas econômicas, em 1978, com Deng Xiaoping, a China vem abrindo as portas, mas manteve a liderança do Partido Comunista. É o que nós chamamos "economia de mercado socialista", um estado de coisas muito diferente do brasileiro. O Brasil também não tem um mercado tão grande quanto o nosso, de 1,3 bilhão de pessoas. Os chineses também são muito inteligentes, trabalham duro...

Veja – O senhor quer dizer que os brasileiros não são inteligentes e não trabalham duro?
Jiang – Não, não... Eu não estou dizendo que os cidadãos de outros países são preguiçosos. Só afirmo que os chineses são conhecidos mundo afora pela força de trabalho. Somos formados pelo confucionismo, por idéias morais rigorosas. Somos muito esforçados, prestamos muita atenção na educação, economizamos muito dinheiro. Isso, aliás, é uma diferença enorme em comparação com o Brasil. O seu país encoraja as pessoas a consumir. Os brasileiros querem comer fora, sair, ir a festas, comprar. Na China é diferente. As pessoas também consomem, mas, de modo geral, tendemos a economizar para os dias difíceis.

Veja – Na fase em que a China ainda estudava outras experiências mundiais para crescer, o "caso Brasil" foi considerado mas não foi seguido. Por quê?
Jiang – As políticas econômicas do Brasil, em geral, não são compatíveis com as condições do país, como as pesadas barreiras fiscais e as altas taxas de juro. Essas medidas impedem o aumento de investimentos no país. Falta certa estabilidade política também. Não é que vocês tenham uma ocupação militar ou uma guerra civil. Mas existe uma instabilidade entre o governo federal e os estaduais. Até onde eu sei, há certa rivalidade, competição por benefícios econômicos. E, acima de tudo, há os problemas sociais do Brasil, que são muito sérios. A distribuição de renda é terrível. Isso pode provocar problemas para a economia. A criminalidade sobe, aumenta a corrupção, criam-se obstáculos sociais.

Veja – A busca de uma "sociedade harmônica" de que tanto se fala aqui é uma tentativa de impedir que os problemas sociais se agravem?
Jiang – "Sociedade harmônica" é o atual slogan político do país. É uma noção de longo prazo, lançada pelo Partido Comunista e pelo governo, que se baseia na visão de mundo dos antigos filósofos chineses, segundo a qual todos devem viver em relações harmoniosas e ter padrões de vida parecidos. Desde o início das reformas, o desenvolvimento social da China tem sido mais lento que o econômico. As diferenças são cada vez maiores. Há quem fique rico da noite para o dia, enquanto cerca de 30 milhões de chineses continuam pobres. Não acho que alguém aqui na China está prevendo que esse modelo de sociedade harmônica vá ser realidade em um prazo menor do que dez anos. Na minha opinião, isso é bom. Dessa maneira conseguiremos fazer girar as duas rodas da carroça, a economia e a sociedade, na mesma velocidade.

Veja – Seu patrimônio pessoal cresceu nos últimos tempos?
Jiang – O meu e o de todos os meus colegas. Está vendo os carros particulares estacionados ali embaixo? Se você viesse aqui três, cinco anos atrás, eles não estariam lá. Hoje, falta espaço para estacionamento. Muitos colegas estão comprando carros e casas. Há dois anos, comprei uma casa nova, maior, e deixei a antiga para minha filha. Muita gente mantém dois domicílios, um menor e outro maior, fora do centro. Aliás, os preços dos imóveis na China estão inflacionados. É um dos sinais do aumento da riqueza das pessoas. Também estamos começando a ter problemas de obesidade devido ao excesso de comida. Já compramos mais roupas e mais carros importados. Especialmente carros.

Veja – Em trinta anos, a China conseguiu baixar o analfabetismo de 60% para 4%, criar um sistema educacional eficiente, posicionar duas universidades entre as melhores do mundo e ter mais de 1,2 milhão de pesquisadores com doutorado. Esse modelo é imitável?
Jiang – Investindo, sim. Em plena era da globalização, do conhecimento e da inovação científica, o nível de investimento em pesquisa e desenvolvimento no Brasil ainda é muito baixo. Certamente, mais baixo que o da China. Um país em via de desenvolvimento não pode se permitir isso. Precisa promover os talentos nacionais. Na China, incentivamos os estudantes que vão para o Ocidente a voltar e trabalhar aqui. Com a educação que receberam lá fora, eles contribuem muito para o desenvolvimento chinês.

Veja – Dizem que a vocação do Brasil é ser eternamente o país do futuro. O senhor concorda?
Jiang – O Brasil poderia ser o país do presente, como a China. Na minha opinião, só não é ainda devido aos problemas sociais. Há um potencial enorme de recursos naturais e, per capita, o Brasil é bem mais rico que a China. Economicamente, aliás, o Brasil vai bem. Quando se compara o desempenho brasileiro com o de outros países em desenvolvimento, a situação econômica é boa. O país tem crescido. Cresceria mais se não fosse tão dependente do capital externo. É uma dependência problemática, como já se viu em crises anteriores.

Veja – Os chineses são conhecidos pela visão de longo prazo, o oposto dos brasileiros. Qual o peso dessa diferença?
Jiang – No que se refere a relações comerciais, acho que negócio é negócio, e todos se entendem. Na hora de fecharem um acordo, os empresários brasileiros têm uma visão de longo prazo, sim. Mas, no campo das diferenças culturais entre os dois países, não me sinto muito à vontade para dar uma opinião. Fui ao Brasil duas vezes e nunca por mais de três dias. Para conhecer realmente um país que não é o seu, você precisa viver, trabalhar e conviver com as pessoas. Talvez até se casar com alguém do país.

Veja – De onde surgiu seu interesse pela América Latina?
Jiang – Não fui eu quem escolheu nada. Quando me formei, em 1980, dois anos depois de começarem as reformas econômicas na China, ainda era o governo que decidia onde e como cada recém-graduado ia trabalhar. Impuseram-me um emprego como acadêmico, voltado para a América Latina, e ponto. Para falar a verdade, nem sabia apontar o Caribe no mapa-múndi. Desde então, fui me aprofundando cada vez mais no assunto. Além do Brasil, já estive na Argentina, no México, em Cuba e no Chile, mas sempre em visitas curtas.

Veja – O Chile é citado como modelo de sucesso na região. Ele é aplicável ao Brasil?
Jiang – O modelo chileno é um sucesso tanto no aspecto econômico quanto no social. Seu modelo é aplicável, sim, a qualquer país vizinho, contanto que o governo esteja interessado em se empenhar. O Chile faz girar harmonicamente as duas rodas, ou seja, tem estabilidade econômica e constância política. Além disso, os chilenos vêm fazendo reformas desde o governo de Augusto Pinochet. Ou seja, estão arrumando a casa duas décadas antes que o Brasil. Os chilenos têm mais reservas, pois poupam mais. Assim, dependem menos do capital estrangeiro. Prova de que a situação do Chile é muito bem-vista por todos ocorreu há alguns meses, durante uma conferência em Tóquio sobre modelos de desenvolvimento. Os asiáticos presentes compararam o Chile ao Sudeste Asiático, que vem crescendo rapidamente. Já as Filipinas, que têm mais problemas econômicos e sociais, foram comparadas com o resto da América Latina.

Veja – O embaixador da China no Brasil, um grande conhecedor do país, costuma dizer que os empresários brasileiros precisam parar de reclamar e de ter medo de competir com a China. O senhor concorda?
Jiang – De fato, onde há luz do sol, há um produto chinês. A China é realmente uma concorrência dura porque nosso custo de produção é muito baixo. Mas o mercado brasileiro não sofre pressão só da China. A competição vem da Coréia do Sul, dos Estados Unidos, do Japão e da Europa. Os brasileiros não deveriam perder tempo reclamando. Deveriam focar no seu potencial para competir melhor. Os empresários chineses sofrem esse mesmo tipo de pressão competitiva e reagem melhorando ainda mais.

Veja – A marca "made in China" é garantia de preço baixo, mas não de qualidade. Isso pode mudar?
Jiang – A China é membro da Organização Mundial do Comércio e cada vez mais setores estão sendo abertos ao exterior. Mas ainda não temos marcas internacionais conhecidas. Há esforços coletivos – do governo, dos empresários, do meio acadêmico – para mudar essa situação. Não temos marcas com fama internacional. A etiqueta "made in China" ainda é associada a baixa qualidade e pirataria, e por causa disso temos de vender 800 milhões de camisas para chegar a um valor equivalente ao de um único Airbus. Em Beverly Hills, Londres ou São Francisco, as grandes marcas vendem produtos que foram fabricados aqui. Porém ninguém compra as peças porque elas são chinesas, mas porque são de determinada marca. O governo reconhece o problema. Temos de melhorar a qualidade de fabricação e o acompanhamento de pós-venda dos produtos chineses. Vamos melhorar muito ainda a gestão das empresas, a capacitação pessoal e continuar trabalhando para melhorar nossa imagem externa. Internamente, vamos dar incentivos fiscais a empresários chineses que se dispuserem a competir fora do país.

Veja – Alguns setores vêem a China como um dos maiores motores da economia mundial. Se entrar em pane, todo mundo entrará junto. Há perigo?
Jiang – Não acredito que a China seja um dos maiores motores da economia do mundo. A China realmente está crescendo muito e rápido, mas, comparada a outros países, ainda é uma economia com participação de mercado pequena na divisão do PIB mundial. Não dá para culpar a China por tudo.

Veja – Nas suas viagens ao exterior para estudos e palestras o senhor notou alguma mudança na maneira como era tratado dez anos atrás e como é tratado agora?
Jiang – Sem dúvida. Há dez anos, ninguém prestava atenção na existência da China. Era um país a mais no globo. Hoje, todos querem saber o que está acontecendo aqui, como estamos vivendo, em que direção vamos, como pretendemos nos relacionar com o resto do mundo. De repente, passei a ser constantemente convidado para falar sobre a China e sua relação com a América Latina em conferências no exterior. Esse interesse pelo país é notável. Mas, quanto ao conhecimento individual, diria que ainda são poucos os que sabem o que é a China. Veja um exemplo ocorrido em fevereiro: a China financiou a construção de um estádio esportivo em Granada, no Caribe. Na cerimônia de inauguração, a banda, em vez de tocar o hino da República Popular da China, tocou o da província de Taiwan. Imagine o constrangimento. Estavam lá personalidades chinesas, o embaixador... Quando estava no Brasil, também perguntei a muitas pessoas o que sabiam sobre a China e só ouvia que era um país enorme.

Veja – Onde o senhor vê seu país daqui a dez anos?
Jiang – Tenho orgulho de dizer que vejo a China, no futuro, em condições muito boas. Em dez anos, a economia estará maior. Vamos melhorar nossa tecnologia, construir mais satélites. O país será mais competitivo e terá um melhor posicionamento internacional. Vamos estar mais próximos das nossas metas de sociedade harmônica. A qualidade de vida dos chineses vai subir.

Veja – Não é otimismo demais?
Jiang – Sou otimista mesmo. Todos somos, na China.

Veja – Se fosse dar algum conselho aos brasileiros com base na experiência chinesa, qual seria?
Jiang – Diria ao presidente Lula para prestar mais atenção nos assuntos sociais. Até gosto do programa Fome Zero, acho que está caminhando na direção correta. Mas ainda falta fazer muito mais em termos de saúde pública, educação, transporte e reforma agrária. É crucial resolver o problema dos sem-terra. E, para crescer, o Brasil precisa rever o sistema de impostos, que hoje é amigo dos ricos e inimigo dos pobres.