O Globo |
19/6/2007 |
Tenho medo de o Brasil se acostumar. De achar normal que o presidente do Senado use um lobista para pagar uma conta da sua mais "íntima privacidade", que ela seja paga em dinheiro vivo com recursos de origem incerta, que seus negócios empresariais permaneçam mergulhados em indícios de irregularidades. E que os senadores dêem tão explícitos sinais de acobertamento num processo dirigido pelo próprio acusado. Tenho medo de o país já ter se perdido nos escândalos seqüenciais cheios de esquemas complexos, fios ligando acusados conhecidos a neofamosos, conversas telefônicas sórdidas, dinheiros flagrados e operações com nomes curiosos - Hurricane, Navalha, Xeque-Mate, Narciso, Curupira, Sanguessugas - e de confundir aloprados, mensaleiros, vampiros. E, de tão cansado desse furacão de sanguessugas aloprados, concluir que é melhor deixar para lá e ir cuidar da vida; que, no final, está difícil para todos. Tenho medo de que o Senado continue exibindo o descaramento da pressa explícita de inocentar seu presidente, fingindo, ainda hoje, que o que está em questão é um caso extraconjugal, e não o pagador da pensão e o matadouro de normas, leis e princípios morais em que se transformou sua defesa. Que acredite num senador como Gilvam Borges e na sua desculpa desqualificada de que "nós, homens, desde os tempos de Adão e Eva, estamos sujeitos à sedução". Que os senhores e senhoras representantes do povo brasileiro na mais alta câmara do legislativo continuem sendo atores de quinta num teatro de absurdos em que documentos toscos, explicações mutantes e óbvios conflitos de interesse sejam aceitos como prova bastante de inocência do chefe do clube. O risco é que a semântica mude o significado do nome do Conselho de Ética. Em vez da designação clássica, passaria a ser o local do acumpliciamento pelos pares e de absolvição prévia sem análise das provas. Tenho medo de que o Brasil tenha passado do ponto de transformar escândalos em algo depurador. Houve um momento em que o país teve o choque e a dor da descoberta de envolvimento de pessoas públicas em uma inaceitável triangulação que envolvia publicitários do governo, distribuição de dinheiro vivo em quartos de hotel e contratos de prestação de serviços para órgãos públicos. Tudo isso no governo de um partido que, durante 20 anos, disse que fazia política com ética. Era uma encruzilhada: ou purgar o erro e curar o tecido nacional enfermo ou se acostumar e ir reduzindo o patamar das nossas exigências éticas. Eram dois os caminhos, e o país tem preferido o pior deles. Tenho medo de que nunca se saiba, por súbita inapetência investigatória, em que mesa foi parar aquele envelope pardo com R$100.000, que entrou, pelas mãos da diretora da empreiteira nas cercanias de um gabinete ministerial. Que nunca se saiba, por esquecida na complexidade dos propinodutos, a ligação entre Engevix e Gautama. Sérgio Sá, o elo perdido entre ambas, poderia explicar tanto fraudes recentes como uma antiga, já afogada nas águas da barragem: a do EIA-Rima da hidrelétrica de Barra Grande. Nele, a Engevix atestava haver por lá apenas um capoeirão, quando eram quatro mil hectares de mata atlântica com araucária. Tenho medo de que jamais se saiba também que dinheiro era aquele que estava nas mãos de amigos do presidente da República e de seus assessores de campanha num hotel de aeroporto em São Paulo. Que passe a ser normal que chefes de "inteligência" de uma campanha de reeleição usem dinheiro sem origem e comprem acusações falsas contra adversários. Que isso seja tão banal, que ninguém seja indiciado e que a única punição sobre eles seja a reprimenda ligeira do presidente da República, chamando-os de "meninos" e de "aloprados". Tenho medo das reformas divorciadas dos diagnósticos. O que o Brasil precisa é de mais transparência nas doações privadas aos candidatos, para que os eleitores fiscalizem os atos dos políticos eleitos, e a solução proposta é aumentar o financiamento público, como se isso fizesse desaparecer o financiamento privado. O risco é ficar totalmente opaco o fio que liga a empreiteira ao político, de ficar eternizado o caixa dois e de se consagrar a hipocrisia. O que o Brasil precisa é de maior relação entre eleitor e eleito, e a solução proposta é diluir essa relação através do voto em lista, fechada ou flexível. O que o Brasil precisa é de novos quadros na sua vida partidária, dominada por caciques de outras épocas: dos políticos que não trabalham e cujo partido se chama "dos trabalhadores" aos políticos que serviram à ditadura e cujo partido se chama "democratas"; de bancadas evangélicas com suas malas de dinheiro da extorsão dominical da crendice, o que, nem de longe, lembra a fé que um dia protestaram ter; de partidos que alegam ser de oposição, social e democrata, mas que recuam do seu papel por temer a ameaça aos seus. Em vez da abertura para que apareçam novos quadros, mais poder aos donos dos partidos, a maioria arrolada nos mesmos prontuários dos escândalos recentes. O que temo, por ser jornalista de economia, é achar que tudo se resume à equação dívida/PIB e ficar comemorando nosso quase "investment grade" sem perceber o grau de deterioração dos valores e o ranking de absurdos que nos encurralam. |